Memórias de um cubo hiperbóreo


Um quarto, quatro paredes, pois o quatro reflecte o quarto, não quatro, seis, pois um cubo tem seis lados, há que adicionar o soalho e o tecto. Um quarto por paragens boreais. A temperatura exterior é áspera, fria, contundente, e quando é mensurada vai a limites abaixo do ponto de congelação. É porque houve em tempos alguém que estabeleceu a água como matéria primária do planeta, do lar dos milhões de cidadãos que habitam o planeta azul; e se é azul, talvez se deva à água. E ao fazer a água como elemento de referência para mensurar a temperatura, estabeleceu dois patamares: o ponto de ebulição e o de solidificação.
A temperatura no exterior do cubo, situa-se abaixo do ponto de rocha, no interior é amena, quente, afável. Todas as residências por estas paragens revelam uma harmonia interior inigualável aos países do sul, onde o ser é impelido a sofrer até no seu próprio lar. As casas no sul, pois os homens do sul consideram-se homens quentes, as casa são mais gélidas no Inverno que qualquer iglô polar. Os seus arquitectos não contemplaram sistemas de aquecimento central por questões meramente financeiras e porque o conforto dos seus habitantes são questões secundárias, sendo o lucro o objectivo primário. O bem-estar vem depois.
Pergunto-me então neste cubo hiper-bóreo quem teria criado o sentido de bem-estar e harmonia?
O exterior é gélido, áspero, contundente. Aproxima-se o solstício do ano novo, e eu contemplo a solitude. No entanto o Sol que evoca a sua solidão e singularidade, é pouco, dura pouco tempo no seu trajecto sobre a esfera celeste. Amanhece tarde, e anoitece cedo. Se o Sol evoca a solitude, neste simples facto encontro eu mais uma contrariedade. Parecem hastes diagonais que se cruzam na minha vida. Ou deveria afirmar que a vida que contemplo são hastes diagonais, são tiras que se cruzam.
Exercito o corpo, faço exercício como forma de limpar a mente das mágoas da solidão. Flexões são o meu exercício predilecto, o mais apetecível. É o exercício que o homem faz quando não tem maquinaria de apoio à formatura muscular. Para variar o músculo trabalhado vario a amplitude das mãos que assentam no soalho. O tronco sobe e desce, desce e sobe forçado pelos braços que o impele a subir. Este acto subtilmente libidinoso, é efectuado sem êxtase final, sem o estágio final de qualquer acto amoroso. É um acto enérgico sem propósito, sem intento, ou se tem intento, é apenas imaginativo e ilusório, sem parecer ter um objectivo. O objectivo é queimar toda a testosterona que me fluía no sangue, que me corria nas veias, a chama que move o individuo e que o impele na procura incessante do ser parceiro do sexo oposto para um delírio carnal.
Mas nem isso. O corpo era exercitado com o intuito da auto-estima, com o intuito da salubre vida, da vida salutar; talvez o fosse, mas na realidade, naquele cubo hiper-bóreo o corpo era exercitado para afastar a monotonia e para evocar a dinâmica. Era exercitado para que se tornasse mais aprazível aos olhos das sereias que o contemplassem, como que um pavão que eleva as penas num acto de exuberância, e clamor visual.
Os escritos eram agudos, não agudos naquele sentido melódico ou harmoniosos, mas agudos no sentido do martírio, e a escrita por estas paragens hiper-bóreas era a mais áspera, ordinária, agressiva, contundente, tudo o que era escrito era dirigido à agressão, à agressividade, ao intuito de magoar o género oposto, ao intuito de provocar estragos, danos, mazelas, mágoa, tudo o que escrevia era com o intuito de arrasar. No entanto por paradoxal forma de expressão, tudo o que escrevia era feito no mais alto dos secretismos. Escrevia num diário por paragens hiper-bóreas. Escrevia com uma caneta, escrevia com uma caneta num diário os pensamentos que me iam na alma. E escrevia na área pessoal informática da faculdade..
No entanto encontrava-me enclausurado naquele cubo de paragens boreais, encontrava-me preso naquela harmonia interior, naquela temperatura amena, no entanto as farpas aguçavam-me a alma, e a solitude emaranhava-se do meu espírito.
Uma barra colocada à entrada da porta, uma barra que se encontrava por de cima da entrada da porta por onde entrava regularmente, não tanto quanto desejasse. Mas quem entra, também sai. Então porque se denomina porta de entrada à porta que também é de saída? Por cima da porta de entrada, uma barra. Naquela barra exercitei o corpo.
O meu colega de quarto, que por altura natalícia se encontrava na terra natal, pois se é natal viaja-se à terra natal, não se encontrava por aqui nesta altura. Então a barra que elevava o corpo, a barra que servia de apoio à elevação do corpo, serviu também para os propósitos mais perversos, para os propósitos mais suicidários, para os propósitos mais angustiantes. Quando naquelas paragens hiper-bóreas a única amada que tive o prazer de amar freneticamente me deixou, o espírito da corda subiu-me à cabeça. O pecado, a serpente, a corda que se enrolava no pescoço, qual cachecol que não agasalha, mas que apenas fere. A corda do alpinismo, a barra que eleva o corpo, tudo sinais de elevação subliminar, serviram apenas para me angustiar. Foi com a corda, a serpente luxuriante, a corda que se prendeu na barra que eleva o corpo, a corda de alpinismo que serve ao mais hábil homem fazer a escalada que o coloca no topo dos montes.
Um cubo, um cubo hiper-bóreo. É que o cubo, por muito significado religiosos que tenha por paragens sulistas, por paragens sufistas, apesar das faces serem lisas, tem algo que deixa os invisuais que o tocam deveras perplexos: tem arestas. Mas tudo o que tem faces tem arestas dirá o mais ilustre matemático. É certo, mas a esfera não possui nenhum dos dois. Mas o mais ilustre arquitecto dir-me-á que ninguém se inspira na esfera para construir uma habitação, muito menos um quarto. Para tal é necessário contratar, contratar não pois evoca troca monetária, para tal são necessários os préstimos de um arquitecto boreal que evoque os espíritos livres da harmonia e paz interiores e que rejeite a angustia do medo e da opressão. Um quarto circular é deveras singular. Mas um quarto tem quatro faces, mais duas, o soalho e o tecto.
É que houve algo de surpreendente que me fascinou neste povo hiper-bóreo, foi o facto de a palavra grátis ser semelhante à de parabéns.
Descobri eu então que os boreais são os mais harmoniosos anti-semitas, mas sempre sem evocar as balas e os átomos dos semitas do norte no novo mundo.
São anti-semitas, mas sempre através do diálogo e da harmonia, salvo algumas excepções que por serem singulares não impliquem que não tenham sido extremamente devastadoras.
As memórias de um cubo hiper-bóreo.
As memórias de um cubo por paragens boreais.

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