Salvini, o mero político


A religião sempre foi um meio para que déspotas e regentes assegurassem o poder, sob o pretexto de que possuíam um mandato divino para exercerem esse mesmo poder. Nas arcaicas guerras santas entre Cristandade e Islão, por muito que os devotos e os ignorantes soldados imaginassem que o que estava em causa era uma questão de fé, entre uma fé sacra com um mandato divino e outra ímpia e herege, na prática, as motivações para os confrontos bélicos resumiam-se a motivações muito mais terrenas, em particular em interesses geopolíticos e geoestratégicos. Quando o Papa Urbano II ordenou a primeira cruzada ao médio oriente, mais do que uma questão de fé, interessava sim canalizar toda o poderio bélico europeu para aumentar a área de influência da Igreja Católica, em vez de se andarem a digladiarem em disputas territoriais. Quando Maomé II, o Otomano, decide invadir Constantinopla em 1453, muito para lá das questões de fé; que de certo motivavam a plebe soldadesca muçulmana a matar os infiéis cristãos ortodoxos, sendo que estes últimos mais não faziam do que defender a sua ancestral cidade, que era sua desde o imperador Constantino; estava em causa uma questão geopolítica. Tanto assim o é, que mal é conquistada a cidade, a capital do império Otomano muda-se para a recém criada Istambul. Tanto que a questão de fé é uma questão menor nos confrontos geopolíticos e geoestratégicos, que tal nunca impediu que nações com a mesma fé se digladiassem, como aconteceu ao longo dos séculos entre os portugueses e os espanhóis, para não irmos mais longe; ou entre as diversas fações do Islão, pois não esqueçamos que quando os "soldados de Alá" não estão a fazer a Jiade estão a matar-se mutuamente.

A fé, é pois, uma procuração, um pretexto para que déspotas e monarcas exercessem o poder absoluto. Todavia a ausência de fé no estado também nunca impediu o despotismo e os interesses geopolíticos, tal como se manifestou de forma clara e sangrenta na União Soviética estalinista. Foram sim os princípios seculares, laicos, humanistas e iluministas que trouxeram os direitos civis, os direitos humanos, o estado de direito e o progresso científico aos estados modernos de cariz ocidental. O que muitos cristãos e islamofóbicos olvidam, é que o ocidente é civilizacionalmente superior às teocracias do médio oriente, não devido à sua matriz cristã, mas devido unicamente aos seus princípios iluministas, e quanto muito, devido à epistemologia que herdou da Grécia clássica. Caso a Europa não tivesse vivido o Iluminismo, estaria hoje por certo tão ou mais atrasada que qualquer país do médio oriente. Aliás, durante a idade média, os árabes eram em muitos domínios muito mais sábios que os europeus, pois criaram a álgebra, a alquimia e desenvolveram largamente a aritmética e a astronomia, para dar alguns exemplos.

Mas poderiam eventualmente os regentes manifestamente cristãos, apesar dos perigos que advêm da mescla entre estado e religião, fazerem uso de alguns dos nobres e humanistas princípios plasmados nos evangelhos. Mas nem isso! O político Salvini, que beija o seu rosário e agradece à virgem Maria em plena sessão parlamentar, é o mesmo que, na boa velha tradição católica de não ler os evangelhos, ignora completamente as palavras legadas pelo seu deus, e aquelas plasmadas na sua sacra antologia de livros. Em Salmos 41:1 é-nos referido que “bem-aventurado é aquele que atende ao pobre”, em Provérbios 11:24 refere-se que “quem dá com generosidade, vê suas riquezas se multiplicarem; outros preferem reter o que deveriam ofertar, e caem na pobreza”, em Provérbios 29:7 também se diz que “o justo se informa da causa dos pobres, mas o ímpio nem sequer toma conhecimento” e em Coríntios 13:14 menciona-se que “a caridade é sofredora, é benigna; a caridade não é invejosa; a caridade não trata com leviandade, não se ensoberbece”. Significa pois paradoxalmente que o gesto de Salvini na realidade, é um gesto, na boa velha tradição laica, com um significado e simbolismo unicamente políticos, considerando que a grande maioria da população italiana é católica, e que Salvini tinha plena consciência que a sessão parlamentar estava a ser gravada com o foco das câmaras de televisão a apontarem para o orador do momento, o primeiro-ministro que discursava mesmo ao seu lado. Salvini é pois um político perigoso para a democracia liberal, pois alia o seu populismo crónico típico de qualquer populista demagogo que evoca os medos mais primários da turba, com um calculismo político meramente especulativo e ausente de quaisquer nobres princípios, traços muito comuns em políticos como António Costa.

Liberalismo para o Verão


Comparemos objetivamente os dois sistemas,
o português e o grego, no que concerne ao modelo
de regulação e emprego dos nadadores-salvadores
Nesta época estival falo-vos de algo positivo, verdadeiramente neoliberal, que temos em Portugal e ao qual não damos o devido valor, pois o ser humano tende a desvalorizar o que tem de bom e adquirido. Falo-vos da profissão de nadador-salvador, os quais prestam um excelente serviço todos os verões, e nos quais a participação do estado é mínima ou residual e cinge-se à mera atividade regulatória e legislativa. 

Portugal neoliberal

No caso português, verdadeiramente neoliberal, caso um indivíduo queira ser nadador-salvador terá de passar com sucesso um curso regulado pelo Instituto de Socorros a Náufrago e organizado por Escolas de Formação de Nadadores-Salvadores Profissionais (entidades privadas). Aliás, desde 2016 o sistema ficou ainda mais neoliberal, pois desde essa altura que os cursos de nadador-salvador passaram a ser efetuados pelas Escolas de Formação de Nadadores-Salvadores Profissionais, deixando o Instituto de Socorros a Náufragos, através da Escola da Autoridade Marítima, de os efetuar. A validade de cada um dos módulos é de cinco anos, após os quais o nadador-salvador terá de os repetir. Os nadadores-salvadores terão depois de procurar trabalho no respetivo mercado, onde o estado não é empregador. A lei obriga a que cada concessionário de praia, bar, restaurante ou similar, seja obrigado a contratar um nadador-salvador para a praia respetiva, sendo o respetivo salário apenas definido pela leia da oferta e da procura. Apesar do salário não estar regulado, ronda em média, cerca de mil euros mensais, um valor bem superior ao salário médio nacional. Também não há limite nem numeros clausus (como nos táxis) para o número de nadadores-salvadores, qualquer cidadão que cumpra os requisitos e passe nos respetivos exames, pode ser nadador-salvador, ou seja, estamos perante um verdadeiro sistema meritocrático e de igualdade de oportunidades. Temos presente em Portugal, pois, um modelo típico neoliberal, onde a intervenção do estado é de mero regulador e legislador. O estado não é entidade patronal nem sequer é a entidade lectiva para o respetivo curso ou aquela que executa os exames de aptidão. É um mero regulador e legislador, nada mais. E perante uma matéria tão crítica como a vida dos náufragos e dos utentes das praias do país, o sistema neoliberal tem funcionado excelentemente desde há décadas.

Grécia socialista

Mas Portugal poderia ter escolhido outro modelo, não tinha que ter escolhido o modelo neoliberal. Estive na Grécia há cerca de quatro anos, mais precisamente em Creta, e presenciei na primeira pessoa o modelo socialista do nadador-salvador aí vigente. O que vos contarei poderá parecer anedótico, mas presenciei-o na primeira pessoa e garanto-vos que é totalmente verídico. Fui a uma praia grega algures nos subúrbios de Retmino e comecei a procurar espaço para a toalha, zona que estava repleta de lixo. Comecei de seguida a recolher o lixo para ter alguma salubridade envolvente, e de repente, um indivíduo calvo na zona central do escalpe e bastante cabeludo nas zonas laterais, com um cabelo grisalho e com cerca de sessenta anos, com uma enorme protuberância abdominal, em tronco nu e de calções vermelhos, aproxima-se de mim e refere-me num inglês torpe para não me preocupar porque a sua esposa seria a responsável pela limpeza da praia, apontando de seguida para uma senhora de certa idade algures sentada num banco de campismo e acompanhada de um pequeno caniche. No instante em que o indivíduo aponta para a sexagenária, a sua alegada esposa responsável pela limpeza do local, o referido canídeo está a defecar na areia, fezes as quais cobre posteriormente fazendo uso das patas posteriores. A senhora em vez de repreender o animal, acaricia-o no lombo, talvez por este ter tapado os seus dejectos fecais prontamente.

Apercebi-me mais tarde que o referido sexagenário, cabeludo, com uma enorme protuberância adnominal, em tronco nu e de calções vermelhos, era o nadador-salvador da praia onde me encontrava. Era pois, naturalmente, funcionário público. A sua respeitosa esposa, também ela funcionária pública, era a responsável pela limpeza da praia. Estavam os dois sentados cada um, por norma, num banco de campismo numa posição "estratégica", isto é, no ponto mais longe de água, logo ao início da areia. O que vale aos banhistas é que o Mediterrâneo é um mar tranquilo pois este senhor jamais conseguiria resgatar alguém. Este nadador-salvador terá com certeza passado com sucesso no respetivo exame de aptidão quando tinha dezoito anos, altura, por certo, em que entrou definitivamente para os quadros do estado. Considerando que, certamente, era um funcionário público com vínculo efetivo ao estado, por lá foi ficando independentemente de quaisquer circunstâncias, desde a idade, preparação física ou protuberância do abdómen. Desde então nunca mais terá feito qualquer exame ou teste, e na Grécia, tal como em Portugal, é praticamente impossível despedir um funcionário público.

Conclusão

Numa matéria tão crítica como a vida dos náufragos, Portugal fez a escolha acertada e correta que se tem revelado deveras positiva para todos: o modelo neoliberal. Imaginemos que Portugal teria escolhido há décadas a versão socialista adotada na Grécia, e que, algum governo posteriormente quisesse adotar o modelo neoliberal hoje vigente. Imediatamente ouviríamos da esquerda vozes de protesto, referindo, a título de exemplo, "que o direito ao trabalho é um direito constitucional e que não se podem descartar as pessoas", ou que "o estado não pode entregar aos interesses privados e do lucro a vida dos banhistas". Agora tentem aplicar esta dicotomia à educação ou à saúde, e vede que Portugal adotou o modelo socialista enquanto que a Holanda, por exemplo, adotou o modelo liberal.