Sobre o paradoxo ideológico do Prof. João César das Neves


Ser-se cristão e defensor de uma economia de mercado,
é contraditório do ponto de vista filosófico
Cristo teria sido naturalmente um homem de esquerda!

Algo que me deixa completamente intrigado quando leio os textos do Prof. João César das Neves, não é a coerência da sua dialética argumentativa, que me parece sólida e bem estruturada, é essencialmente uma questão de fundo. O Prof. João César das Neves faz parte de uma elite intelectual pós-moderna a qual é denominada de “cristãos liberais”. Tenho vários bons amigos que partilham desse enquadramento ideológico, ou seja, são favoráveis a uma economia de mercado com traços liberais, mas são crentes e muitos deles católicos devotos. O partido em Portugal, que naturalmente se enquadra nesta visão ideológica bicéfala, é o CDS-PP. Tentarei explicar que do ponto de vista filosófico, conciliar cristianismo com economia de mercado, vulgo capitalismo, é dos maiores sofismas filosóficos, de que há memória na História do pensamento Universal. Alonguemos!

Os juros

Um dos mecanismos elementares de qualquer economia de mercado, e que são completamente banais nos tempos que correm, é o pagamento de juros. Alguns deles, diria que são aceitáveis, e servem apenas para colmatar a inflação, ou o risco de não pagamento do empréstimo contraído; mas questiono-me todavia se será condicente com os tratados cristãos, um qualquer país cortar uma certa quantidade (mil milhões de euros) a milhares de servidores públicos, desempregados, pobres e mormente pensionistas, os mais idosos que devem merecer o máximo respeito de uma sociedade e que contribuíram durante uma vida inteira; mas ao mesmo tempo o mesmo país pagar sete vezes esse valor em juros (Portugal paga 7 mil milhões por ano em juros). Ou será aceitável do ponto de vista cristão, um povo pagar de juros praticamente o mesmo que paga com a sua saúde? Lembremo-nos que o juro, é aquele valor que se paga a mais, aquando de um empréstimo, e que o credor utiliza na maioria dos casos, perante a aflição dos devedores, para lucrar com práticas usurárias e agiotas.

Ciente da falta de humanismo preconizada pela ferramenta que os juros representam, e também por ter sido um mecanismo historicamente muito usado por judeus, a Santa Igreja sempre condenou a prática de juros ao longo da sua história milenar, e tal está bem plasmado nas Sagradas Escrituras (Êxodo 22:25; Salmos 15:5 ou Ezequiel 22:12 são apenas alguns exemplos). Aliás, basta uma leitura de relance pela Bíblia - presumo que o Prof. João César das Neves tenha uma – para lermos uma série de passagens que condenam vivamente a prática de juros. Um bom cristão pode e deve emprestar dinheiro ao seu próximo quando este tiver em necessidade, mas não deve cobrar-lhe juros. A prática dos juros é hoje encarada com tanta naturalidade pela nova ordem cristã liberal, que um dos ícones máximos deste paradoxo em Portugal, assenta na pessoa do Dr. Jardim Gonçalves, um banqueiro que segundo consta se diz cristão, mas que recebe uma reforma milionária num país com graves carências sociais, derivada dos juros que cobrou sobre os incautos durante uma vida de atividade profissional. Na sátira de Gil Vicente, o Dr. Jardim Gonçalves não seria Joane, o parvo, seria antes o judeu ou o agiota!

A distribuição da riqueza

Uma das grandes virtudes de se ser cristão, é que para bem ou para mal, a “constituição” de um cristão, as Sagradas Escrituras, não muda desde há quase 1700 anos, estando já bem definida aquando da realização do primeiro concílio de Niceia em 325 d.C. Para compararmos, basta pensarmos que desde 1974, em apenas 40 anos de democracia, a Constituição da República Portuguesa já teve uma série de revisões constitucionais, que se foram adaptando às exigências das circunstâncias, que em muitos casos, deturparam os ideais e os princípios dos fundadores da mesma. Reparem que não digo que não foram importantes, digo apenas que devido a pressão política, a constituição foi alterada, para acomodar as ideologias vigentes. Ora, por milhares de anos e por milhares de gerações, depois de terem nascido e morrido homens como Marx e Voltaire, a Bíblia manteve-se imutável. Para o bem e para o mal! Para o bem, porque preservou uma coerência que permite ao cristão devoto não perder o rumo dos ideais fundadores do cristianismo; para o mal, porque quando o que nela está plasmado desagrada ou perde o contexto na modernidade, incumpre-se de forma bastante natural, arranjando-se depois uma série de argumentos aparentemente válidos que justificam a ação pecadora. Fátima, uma deidade popular que qualquer teólogo coerente à luz dos Evangelhos definiria como idolatria, está presente na piedade cristã mais popular por Portugal. Quem diz Fátima, diz outra qualquer santa ou santo solidificado em forma de estátua para adoração dos fiéis.

É aqui que entra o paradoxo na nova ordem cristã liberal, aquando do princípio da distribuição da riqueza. Cristo deixa-nos imensas passagens sobre a mesma, mas a mais marcante é a parábola do jovem rico plasmada em Marcos X, onde Cristo nos diz de forma categórica, cristalina e sem qualquer margem para interpretações ambíguas, que “é mais fácil um camelo passar num buraco de uma agulha, do que um rico ir para o paraíso”. Para percebermos que não pode haver qualquer lugar a ambiguidades nesta passagem, Cristo recomenda ao jovem rico que dê toda a sua riqueza aos pobres e se junte a Ele. João César das Neves, assim como a elite intelectual a que faz parte, ao ser defensor de uma economia de mercado baseada no capitalismo, incorre num paradoxo teológico magno, pois é sabido que as economias de mercado, são produtoras de elevadas assimetrias sociais na distribuição de riqueza. O jornal Público, divulgou recentemente um excelente relatório sobre os rendimentos dos maiores gestores do PSI-20, e a título de exemplo, Ferreira de Oliveira, presidente do conselho de administração da galp, aufere 40 vezes mais que o trabalhador médio da empresa que dirige. Pergunto a João César das Neves, qual seria o rendimento de Cristo em relação aos seus seguidores e apóstolos.

Reparai, que não quero com isto dizer que o facto de haver assimetrias de rendimentos, em muito baseadas na meritocracia, não seja em muitos casos positiva e profícua. Digo apenas, que por muitos argumentos que se encontrem em contrário, não é de todo coerente ser-se verdadeiramente cristão e ao mesmo tempo defender uma economia de mercado que produz elevadas assimetrias sociais, para mais se considerarmos que metade da riqueza do mundo, estão nas mãos de menos de dois porcento da população.

Liberdade individual

Um dos magnos princípios dos liberais é defender que o Estado não deve interferir na forma como cada indivíduo ou cidadão organiza e constrói a sua vida pessoal. O Prof. João César das Neves é tão vincadamente contra a presença do Estado na vida dos cidadãos, que por exemplo no seu espaço de comentário do Diário de Notícias, o professor faz uma crítica ao Acordo Ortográfico pois considera de certa forma intrusivo que o Estado interfira nas cartas e nos textos que as pessoas escrevem entre si. Apesar de tal ser falso, pois cada um privadamente escreve como lhe aprouver sem incorrer em qualquer ilegalidade, em anagramas ou em espelho como escrevia Leonardo Da Vinci; revela uma obsessão excessiva e quase patológica pela presença do Estado na vida de cada um, ainda para mais de alguém que piamente defende uma instituição como a Santa Igreja. 

Reparemos que a Igreja não dita às pessoas como estas devem escrever as suas cartas, mas é bem mais incisiva e tece mesmo legislação canónica sobre como as pessoas devem ter relações sexuais ou devem conduzir a sua vida familiar. O professor indigna-se com a putativa ingerência do Estado nas cartas pessoais, mas não lhe importuna o facto de a Igreja dizer às pessoas como estas devem levar a sua vida sexual. Aliás, basta estudarmos a história da Igreja, para percebermos que ao longo da sua história milenar de influência política, sempre foi contra uma série de liberdades dos cidadãos, como liberdade religiosa, liberdade sexual ou liberdade de pensamento. Se não tivessem nascido homens anticlericais como Voltaire ou Rousseau; se não tivesse havido uma revolução em França em 1789, João César das Neves não teria condições para hoje se considerar um homem liberal.

E porque é aceitável ser-se cristão e liberal?

Tenho meditado muito nesta questão. Se São Pedro, o primeiro papa, imaginasse que 2000 anos depois da fundação do cristianismo nasceriam academias de índole católica que estudam mecanismos de otimização para tirar o maior proveito financeiro possível em juros, de estados e de povos, por certo não ficaria agradado. Mas em 2000 anos muitos fenómenos históricos e ideológicos sucedem-se, e o pensamento universal alterou-se muito desde então, sendo que naturalmente a Igreja necessitou de se adaptar para se acomodar e sobreviver com as ordens vigentes. Parece-me evidente, que muitos cristãos são liberais, apenas como contradição ao socialismo, porque desde finais do séc. XIX que os capitalistas e burgueses, lutam a par com os cristãos, contra os ideais socialistas.

Tal ficou bastante claro, aquando da revolução de abril em Portugal, quando a direita mais ortodoxa e católica se juntou a Mário Soares, laico e ateu, para que todos pudessem combater o comunismo que se instalava. O problema, no meu entender, é que aquilo que começou por ser apenas um inimigo ideológico comum à escala global (o socialismo) com os tempos evoluiu para uma amálgama ideológica a que dão o nome de cristãos liberais. Parece que no panorama político-partidário vigente, onde existe apenas um eixo esquerda-direita, para alguém ser de “direita”, necessita de ser simultaneamente liberal e cristão. As incompatibilidades ideológicas e filosóficas destas duas vertentes são tão vastas, que das poucas coisas que encontro em comum, é na realidade apenas aquilo que ambas contestam, ou seja, o socialismo.

Se todavia pensarmos mais um pouco, percebemos claramente que o cristianismo fundador, tem muitas mais semelhanças com o socialismo, do que com o capitalismo. A humanização do trabalho e a distribuição da riqueza, por exemplo, são dois desses traços comuns. Ler a doutrina social da Igreja ou ler um manifesto comunista, se nos abstrairmos de quem faz a redação, conseguimos encontrar vários denominadores comuns. Eu diria mesmo que das únicas incongruências que o socialismo tem com o cristianismo, mas todavia a mais capital, é mesmo o facto de o socialismo ter-se fundeado como uma doutrina anticlerical. Mas fê-lo não porque o socialismo tivesse um repúdio aos Evangelhos, mas porque tinha um repúdio visceral à forma faustosa e opulenta com que a Igreja se apresentava perante os fiéis, e na forma como esta usava os ditames religiosos como circo para distração das massas. A mesma lógica argumentativa que Marx usa para dizer que “a religião é o ópio do povo” pode ser perfeitamente adaptada aos tempos modernos ao fenómeno massificado do futebol.

Já o capitalismo e o liberalismo sempre foram muito bem sucedidos exatamente por serem ideologias com poucos princípios e preconceitos, tendo assim muito maior abertura para absorver quaisquer outro tipo de ideologias. Podemos dizer que a China, os EUA, o Brasil ou a Holanda, com traços culturais bastante distintos, têm todos algo em comum: neles funciona uma economia de mercado. O capitalismo singrou exatamente por isso, por ser versátil e adaptável, por não se incomodar em partilhar ideologias com outras quaisquer ideologias. Hoje em dia pode naturalmente sem se provocar muito incómodo a terceiros, ser-se simultaneamente capitalista e maoista, capitalista e sindicalista ou capitalista e cristão.

É por isso que sempre que leio o Prof. João César das Neves, lembro-me de um livro de Fernando Pessoa, o “banqueiro anarquista”, cuja leitura recomendo vivamente. Trata-se de um banqueiro, que pela força das circunstâncias tinha em tempos sido anarquista, mas que num diálogo muito interessante, encontra uma série de argumentos para justificar essa dualidade aparentemente incoerente. As ideologias professadas pelo Prof. João César das Neves representam assim um dos maiores paradoxos ideológicos dos tempos modernos. Perdoemos-lhe, afinal, perfeito é só Um.

PS: O que teria dito Cristo se alguém se lhe dirigisse com uma expressão como “não há almoços grátis”?

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