Da Europa, dos gregos e da crise


A grande questão que se coloca perante os novos tempos de mudança da política europeia, e mais precisamente a grega, é de saber em que ponto cada um se encontra no contraste ideológico entre a matemática financeira e os interesses do povo grego, e de uma forma mais geral, do povo europeu. Por um lado, devemos ser racionais e não nos deixarmos embrenhar por facilitismos da oratória repletos de sofismas e falácias argumentativas tantas vezes evocadas pela esquerda, e por outro lado, não podemos perder o nossa humanidade e como tal deixar de nutrir um sentimento passional e humanitário pelo próximo, ideários tantas vezes ignorados pela direita. Há muito tempo enquanto Filósofo, que tento procurar a Verdade, e não propriamente procurar a média ou o equilíbrio, entre a esquerda e a direita tradicionais.

Por um lado é verdade que os países sobre os quais recai o fardo da dívida pública, tiveram comportamentos do ponto de vista orçamental, desviantes e erráticos, usando a dívida não para fazer investimentos que promovessem o crescimento económico, mas tão-somente para despesas dúbias do ponto de vista económico, como autoestradas. Por outro lado, o serviço da dívida que cada um desses países paga, é um fardo pesado que impossibilita esse mesmo crescimento económico e por conseguinte o pagamento da dívida. Tal remete-nos para a velha e intemporal pergunta do foro ético-financeira, sobre a quem pode ser imputado responsabilidades perante um empréstimo com juros que não é cumprido, se ao devedor, se ao credor. Por um lado há devedores irresponsáveis, que usam o crédito fácil das economias de mercado para gastos completamente frívolos e sem qualquer retorno financeiro profícuo, como é o caso do crédito pessoal ao consumo; por outro lado, o credor fazendo uso muitas vezes da aflição dos devedores, pratica juros considerados pelo senso comum, como agiotas.

A Grécia, a Fundadora do pensamento ocidental

No caso grego, independentemente de poderem ser perdulários na forma como o Estado cobra receita fiscal, da corrupção endémica das elites, ou da forma cultural como cada um encara os impostos ou o dever público; denoto um sentimento primário em muitos cidadãos europeus, e muito particularmente nos portugueses, contra o povo desta ínclita nação. A Grécia representa em grande parte a fundação da Europa, tendo dado ao mundo a Democracia, a Filosofia e a Ciência ocidentais, o Teatro e grande parte da Arte, já para não falar de uma vasto número de verbetes do nosso dicionário. A própria palavra austeridade provém do grego e significa aproximadamente viver em retidão. Mais irónico ainda é atestar que a própria palavra Euro provém também do Grego, sendo o Euro na antiga Grécia o deus do vento do Leste, pois haviam deidades para cada vento proveniente de cada ponto cardeal. Por evolução linguística, a palavra Euro deu origem à própria palavra Europa. A Grécia é não só a raiz de um vasto conhecimento de que nos legou, como é a fundadora de uma grande parte dos valores ocidentais, essencialmente aqueles da era pré-cristã, muitos deles reacendidos com o Renascimento e com o Iluminismo. A Liberdade, a Democracia, a Arte, a Ciência, a Matemática, a Física, a Literatura, a Filosofia e até a forma como encaramos a nossa participação cívica nas cidades e nos estados, devemo-las em grande parte aos gregos.

Há todavia no mundo, um grupo de grandes membros do capital, que tendo vários ativos em fundos que por sua vez fazem investimentos em dívidas públicas de estados soberanos; que obtêm desses mesmos povos através da carga fiscal, enormes retornos de capital através dos juros. Interessa então perceber como funciona na realidade o mecanismo dos juros. Quando o leitor ouvir ou ler alguém na comunicação social falar em serviço da dívida, na prática esse alguém estará apenas a usar um eufemismo para se referir a juros. Os juros sempre foram ao longo da história milenar, e principalmente durante a era Cristã, encarados como uma prática menos própria e pecaminosa. Os cristãos estavam proibidos de os praticarem perante um empréstimo, sendo que os judeus, por não serem cristãos podiam fazê-lo abertamente. Assim, esta exceção aplicada aos povos semitas que viviam na Europa, permitiu-lhes ganhar bastante capital e riqueza, o que motivou discriminação e sentimentos de ódio étnico. A teologia escolástica proibia os juros, essencialmente porque não os considerava uma prática que estava de acordo com a palavra de Jesus, na medida que o credor, aproveitava-se da necessidade do devedor, para daí tirar lucro. O protestantismo, que de certa forma removeu a demonização do lucro, começou a tolerar a prática de juros como uma ferramenta aceitável numa economia de mercado, desde que fosse aceitável e não exagerado. Hoje a própria lei tipifica a usura não simplesmente como a prática de juros, mas como a prática de juros considerados elevados. Com o advir do sistema capitalista e da criação dos primeiros bancos na Europa, os juros começaram a ser uma ferramenta perfeitamente comum nas relações negociais de foro financeiro. Para alguns devedores os juros não trazem qualquer constrangimento, porque ao firmarem os seus negócios e cresceram em lucro e dividendos, conseguem pagar os juros e por sua vez irem abatendo o valor nominal do empréstimo.

Como funcionam os juros. O exemplo da folha de papel

As dívidas com juros
obedecem a equações exponenciais
Todavia, os juros trazem um enorme problema matemático que o comum dos cidadãos descura por completo, e que mesmo muitos economistas aparentam ignorar. Os juros, essencialmente os compostos que são os aplicados na grande maioria dos empréstimos, formulam matematicamente uma denominada progressão geométrica. As progressões geométricas formam equações exponenciais que têm comportamentos, que inicialmente aparentam ser pouco ascendentes, mas que a partir de um certo ponto, começam a ter crescimentos explosivos. Os juros não são exceção. Um exemplo simples, para que o comum dos leitores perceba, é o caso da altura de uma folha de papel A4. Se dobrarmos uma vez uma folha A4 que tenha um milímetro de espessura, obtemos no total dois milímetros de espessura. Se dobrarmos duas vezes obtemos quatro milímetros de espessura, se dobrarmos três vezes obtemos oito milímetros de espessura, praticamente um centímetro. Todavia se dobrarmos vinte e nove vezes, obtemos uma distância muito superior à distância média entre a Terra e a Lua. Tal acontece porque o caso da folha de papel é considerado matematicamente como uma progressão geométrica, cujo comportamento é exponencial com base igual a dois. Ora, no caso dos juros, o comportamento do ponto de vista matemático obedece exatamente ao mesmo princípio, ou seja, estamos perante progressões geométricas que apresentam comportamentos exponenciais, cuja base dependerá neste caso da taxa de juro. Se alguém pedir um empréstimo de cem euros com uma taxa de juro a cinco porcento, no ano seguinte deve apenas cento e cinco euros. Todavia, passados dois anos, os cinco porcento não se aplicarão apenas ao montante base, mas ao valor devido, ou seja a cento e cinco euros, ficando o devedor a dever no segundo ano cento e dez euros mais vinte e cinco cêntimos. Ao final de quarenta anos, o devedor, caso nunca tenha abatido a dívida nem os juros, já deve perto de setecentos euros, um valor cerca de sete vezes superior ao pedido.

Todos estes sistemas causaram pouca celeuma ou contestação em períodos de crescimento económico, pois os estados iam usando a receita fiscal para irem abatendo no valor da dívida e no pagamento dos respetivos juros, porque o próprio sistema capitalista ia incentivando os Estados a contraírem dívida, para construírem muitas vezes infraestruturas completamente dispensáveis, como rodovias para o caso europeu. Este exemplo económico, o caso da energia e da mobilidade, é um caso que investigo desde há muito. A Europa é oitenta porcento dependente de energia, não tendo recursos petrolíferos endógenos, e todavia os estados europeus endividaram-se desde o pós-guerra em vários biliões de euros (notação europeia) para construir infraestruturas rodoviárias. Países produtores de bens transacionáveis, superaram bem estes momentos de crise, porque as exportações permitiram injetar na economia nacional, o capital necessário para financiar o Estado Social e as restantes despesas do estado. Nas economias periféricas, que se tornaram na grande maioria, países importadores, não produzindo de relevo bens e serviços suficientes para exportar, tendo os seus cidadãos naturalmente e legitimamente aspirado a um estilo de vida com padrões europeus, os diversos estados centrais obtiveram as suas receitas, não através de contas orçamentais equilibradas, mas através de dívida pública. Ao acréscimo anual dessa dívida, impera ainda referir que as débeis economias no sector produtivo, a questão demográfica e a dependência energética dos produtos petrolíferos, aliado aos elevados défices na balança de pagamentos; fez com que esses países não conseguissem ter crescimentos económicos de relevo, mesmo com os enormes apoios dos estados, estados esses que foram tendo défices sucessivos para tentar de forma infrutífera impulsionar o crescimento económico. Portugal é um caso típico pois na década entre dois mil e dois mil e dez, mesmo considerando que o Estado se endividou a um ritmo médio de quatrocentos e sessenta euros por segundo, o crescimento económico médio não foi além dos zero vírgula sete porcento.

Pontos estáveis e instáveis

Um pêndulo simples tem um ponto estável.
Pequenas variações na massa m, fazem com que
a mesma tenda a regressar ao ponto inicial.
Dívidas muito elevadas tornam
os pontos económicos instáveis.
Vários anos nestas condições, e muitos estados chegaram à situação explosiva, que antes havia referido para as equações exponenciais, onde pequenas variações tornam a situação ainda mais difícil para as economias, transformando-se naquilo que os matemáticos denominam por ponto instável. Para que o leitor tenha uma noção do que é um ponto estável e instável de uma forma simples e pedagógica, dou o exemplo do pêndulo. Um pêndulo convencional, onde o peso esteja em baixo e a haste oscilatória esteja presa em cima, representa um ponto estável, porque pequenas variações no pêndulo, como um pequeno toque, faz com que o pêndulo regresse à situação inicial de repouso. Já todavia, se a haste for rígida e estiver presa ao chão e o peso do pêndulo estiver equilibrado no topo da haste, situação inversa da anterior, estamos perante um ponto instável, porque pequenas variações no pêndulo, fazem o sistema acelerar para uma posição extremamente distante da posição inicial de repouso. Na economia sucede o mesmo quando a dívida ultrapassa um determinado limite, porque o valor dos juros ascende a um certo valor, que torna insustentável o seu pagamento em moldes humanamente aceitáveis. Mesmo no caso extremo em que os cidadãos não produzam qualquer despesa, os juros podem atingir um certo montante em que fica praticamente impossível sustê-los. Mesmo que os estados façam um enorme esforço para pagar essa dívida, cortando salários e benefícios sociais, como não recolhem receita fiscal e como não conseguem crescer, entram na denominada espiral recessiva, termo coloquial para se referir a um ponto instável num sistema económico. É por esse motivo que o Tratado Orçamental firmado pela grande maioria dos países da União Europeia, estabelece como limite para a dívida o valor de sessenta porcento do Produto Interno Bruto.

Conceção cultural da dívida

Existe uma conceção completamente falsa na forma tradicional como encaramos uma dívida e principalmente a dívida pública. Karl Marx, sintetizava muito bem, que por norma os capitalistas ignoram qualquer tradicional sentimento como a honra, a confiança ou o patriotismo, tendo reduzido todos esses valores tradicionais ao frio calculismo dos contratos negociais de foro financeiro. Mas esses mesmos capitalistas incutem nos povos, a sensação coletiva de culpa pelo facto de serem devedores, muitas vezes ficando subentendido o epíteto popular de caloteiro. Este tipo de terminologia pejorativa, surgiu exatamente num país como Portugal, rural e composto essencialmente em tempos por pequenas comunidades, onde quando alguém contraía um empréstimo porque estava em dificuldades, jamais poderia deixar de o pagar, visto que o credor lhe havia concedido um enorme e cristão favorecimento, ao ceder um crédito a alguém que passava por dificuldades, numa altura em que o crédito das instituições financeiras como os bancos era praticamente inexistente no meio rural. Assim, a cultura popular, no sentido de premiar e defender o caridoso ou o filantropo, incutiu naqueles que não pagam as suas dívidas o epíteto pejorativo de caloteiro, alguém que usou da bondade de terceiros para obter dividendos. Com a popularização do sistema capitalista e da prática comum dos juros nos empréstimos, a cultura popular, com uma inércia muito lenta, continuou a ter incutida no espírito coletivo o princípio de que aqueles que não pagam as suas dívidas são caloteiros. Para atestarmos que essa raiz cultural está bem vincada, e não apenas na cultura lusa, é interessante asseverar que na língua alemã, a palavra dívida e a palavra culpa são exatamente a mesma.

Com o florescimento dos sistemas capitalistas e com o crescimento das dívidas soberanas, onde o juro é uma prática quase obrigatória, o capitalista continuou a incutir nas massas o sentimento de culpa, por o estado, ou seja, o bem-coletivo, não cumprir os seus compromissos financeiros, ficando subjacente que o credor fez um filantropo e cristão favor ao estado ao conceder crédito ao orçamento público. Usando da dialética parabólica, e de um mecanismo lógico denominado de recurso ao absurdo, mostrarei que o sentimento de culpa incutido nas massas devido às dívidas que estão inseridas numa sociedade capitalista, não tem razão de existir. Imaginemos que um viajante está no meio do deserto a morrer à sede, tendo gasto as suas poupanças com uma mulher na cidade anterior, e que encontra um poço de água detido por alguém que lhe pede um euro por um copo de água. O viajante, como não tem qualquer dinheiro suplica por favor por água ao detentor do poço, mas este intransigente não cede, propondo-lhe todavia um contrato, em que o viajante pode obter a água, tendo todavia de contrair uma dívida de um milhão de euros, devido aos mecanismos de oportunidade usados pelo detentor do poço. O viajante assinaria o contrato respetivo, beberia a água e ficaria com uma dívida no dia seguinte de um milhão de euros. Neste caso académico e hipotético, o devedor caso não pagasse a dívida, e como foi irresponsável, seria considerado, aplicando o recorrente epíteto popular, como um caloteiro perdulário que não soube gerir os seus recursos. 

A conceção popular em relação às dívidas está assim completamente deturpada e acima de tudo é anacrónica, pois não falamos de dívidas que contraímos por favor a amigos ou familiares, falamos de dívidas que se obtêm com instituições financeiras que têm dos melhores algoritmos matemáticos para prever retorno e risco. Fique completamente enganado o leitor que ache que não pagar uma dívida a um banco ou a uma instituição financeira deverá ser encarado com um sentimento de culpa. É tão-somente um incumprimento contratual, que acontece em tantas coisas recorrentes do dia-a-dia, mas como a palavra dívida tem uma carga emocional na cultura popular, as pessoas ainda guardam um dever quase sacral no pagamento de dívidas a instituições financeiras, como se tivessem pedido emprestado a um irmão ou um grande amigo, não fazendo no inconsciente qualquer distinção conceptual. Obviamente que não defendo que cada um deva não pagar as suas dívidas às instituições financeiras, mas o não pagamento das mesmas deve ser comparado a outro qualquer incumprimento contratual que é perfeitamente recorrente no dia-a-dia legal e judicial, como eliminar unilateralmente um contrato com um provedor de serviços de televisão ou telemóvel. É algo que acontece milhares de vezes por dia, e não é por isso que a cultura popular oferece o epíteto pejorativo de caloteiro, ou outro equivalente, quando alguém não pede fatura por uma reparação de um automóvel ou quando não paga bilhete de autocarro. Interessante que a cultura popular portuguesa tem um nobre respeito pelo próximo, no sentido rural e cristão do termo, mas guarda uma aversão e despeito pouco próprio pelo erário público. É por isso mesmo que a cultural popular tem incutido um sentido pejorativo para os devedores incumpridores, porque, tradicionalmente, eram indivíduos que desrespeitavam alguém que havia sido caridoso para com eles. Mas porque a palavra é a mesma, uma dívida, a cultura popular associa esse dever quase rural, o pagamento de uma dívida, mesmo que a mesma seja nos moldes capitalistas a uma grande multinacional do sector financeiro. O paradigma desta forte pulsão psico-coletiva é quase surreal, quando o comum dos cidadãos sente-se na sacra obrigação de pagar uma dívida a um banco privado, mas não lhe importuna a evasão fiscal, ou seja, todos nós.

A Economia, a matemática aliada à psicologia coletiva

Aliando todos os conceitos previamente estabelecidos, percebe-se que os agiotas estão a lucrar sabiamente com a situação grega. A economia da Grécia encontra-se então num denominado ponto instável, onde pequenas variações na dívida provocarão imediatamente uma explosão ainda maior na mesma e no tecido económico, pois os juros tomarão valores insustentáveis. Por outro lado, alguns elementos dos povos da Europa, mesmo os do sul, sentem em parte que os gregos são um povo perdulário e laxista, que não sabe ter controlo nas suas finanças públicas e na forma como recolher dinheiro para o Estado, atribuindo à Grécia um enorme sentimento de culpa, perante os credores, muitos deles praticando juros agiotas. A solução precisa então de ser radical, e pode ser apenas o corte da dívida. Não uso nunca a palavra perdão, pois essa palavra mais uma vez, evoca um sentimento nobre e filantropo que se aplicava apenas no meio rural, onde alguém que havia sido caridoso, perdoava o facto de o devedor não conseguir cumprir os seus compromissos. Pergunto ao comum dos leitores, se se sentem perdoados pelo Estado, quando não pedem fatura por algum serviço ou quando estacionam um carro em cima do passeio sem serem multados. Pergunto ao comum dos leitores, se se sentem perdoados com uma operadora de telemóveis, quando porque estão descontentes pelo serviço, não pagam a mensalidade e anulam o contrato de forma unilateral. Logo, a anulação da dívida grega, como de grande parte da dívida europeia não é um perdão, é apenas, do ponto de vista contratual, a anulação unilateral de um contrato leonino e agiota.

Dir-se-á que posteriormente não conseguirão encontrar financiamento para as despesas correntes do estado, mas tal é um sofisma recorrente da classe económica. Por exemplo, Portugal há já algum tempo que tem saldo primário positivo. Significa, que se Portugal não tivesse de suportar o pagamento de juros, neste momento não teria défice orçamental. Analisadas as dívidas do países do Ocidente desde o pós-guerra, em termos nominais, a tendência recorrente é quase sempre a mesma, ou seja, têm todas um crescimento exponencial.

Crescimento económico, prosperidade ou insustentabilidade?

A grande maioria dos economistas defende que para sair de uma situação de endividamento, a forma mais eficaz é através do crescimento económico. A teoria é evidente, pois o Estado, aplicando as mesmas taxas fiscais, ao arrecadar mais receita fiscal com o crescimento do produto, consegue pagar os juros da dívida e melhorar as contas públicas. Este modelo de desenvolvimento, teve muito sucesso no pós-guerra e com recursos praticamente ilimitados, tendo dado origem às sociedades do consumo. Numa sociedade economicamente moderada, uns sapatos dariam para pelo menos dois anos, um meio de transporte daria para dez anos e a variedade da indumentária não precisaria de ser muita. Mas nas sociedades de consumo, é impelido aos cidadãos que consumam com a maior voracidade possível, estando todos os produtos desenhados, concebidos e desenvolvidos pelos investigadores e pelas empresas, para serem o mais perecíveis o quanto possível. Assim, ao ser necessário comprar outro produto, o consumidor estará a estimular a economia e a aumentar a receita fiscal. Este modelo é positivo do ponto de vista da psique humana, pois obriga os indivíduos a trabalhar cada vez mais e a serem cada mais produtivos para poderem adquirir cada vez mais bens. Por outro lado, as empresas podem, ao ter produção constante, oferecer emprego e providenciar inovação e gerar receita fiscal, como é o caso do sector automóvel ou das comunicações móveis.

Mas todo este modelo pode enveredar por várias falácias. Por exemplo no caso da indústria automóvel, a indústria não pretende oferecer aos seus consumidores mobilidade, pretende oferecer sim através do marketing, conforto e felicidade, mesmo que fictícias, obtidas através de muitas horas de trabalho. O português médio por exemplo trabalha mais de metade do ano para pagar as despesas do seu carro, quando um índio da Amazónia que anda apenas a pé, gasta apenas oito por cento do seu tempo com mobilidade. Assim, todo este modelo económico aplicado por exemplo à mobilidade é um embuste, pois na realidade os consumidores não estão a consumir mobilidade ou acessibilidade quando adquirem um veículo automóvel, estão apenas a adquirir o conforto de um habitáculo de metal e alguma vã felicidade, através de muitas horas de trabalho. Acresce o facto de a Europa ser oitenta por cento dependente de energia, estando a grande maioria dessa dependência no setor dos transportes. O automóvel enquadra-se assim perfeitamente no paradigma deste modelo de crescimento económico, pois com o mesmo, não só o consumidor se endivida para poder adquirir um veículo cuja último objetivo que providenciará de forma segura e eficaz é a acessibilidade, mas também o consumidor necessitará de adquirir através do seu trabalho, o combustível que fará locomover esses mesmos veículos. A relação entre a mobilidade e as condicionantes económico-financeiras que antes postulei poderá parecer remota, mas os países que atravessam maiores dificuldades financeiras e nas suas economias, como por exemplo os países do sul, são exatamente aqueles que têm maiores taxas de motorização. Além disso, este modelo económico também não é sustentável pois os produtos ao serem percíveis, a quantidade de lixo que cada consumidor produz toma proporções insustentáveis. O mesmo princípio se aplica a outros recusos naturais como água, madeira ou minérios.

A crise da Europa

A Europa atravessa então uma crise perene por todas estas razões. Primeiro, tem tido fracos crescimentos económicos, e com crescimentos da dívida bem superiores, sendo que na dívida acrescem no futuro os juros, e como já foi explanado, quando a dívida e os juros entrem num determinado valor, o ponto torna-se instável. Depois, a Europa tem uma elevada dependência energética, cerca de oitenta porcento, dependência essa que se deve essencialmente aos transportes e muito particularmente ao automóvel. Esta situação é mais acentuada nos países que têm elevadas taxas de motorização, mas que não têm indústria automóvel própria, como Portugal, Espanha ou Grécia, sendo que países produtores de veículos conseguem ter comportamentos económicos mais pujantes porque exportam veículos, como a Alemanha ou a França. Por outro lado, a abertura das fronteiras comerciais da Europa ao mundo, trouxe concorrência desleal, pois o extremo Oriente invadiu a Europa com produtos, cujo preço do fator trabalho, a Europa nunca conseguirá competir. Resta à Europa nesta matéria, a inovação tecnológica, e mais uma vez, os países que têm melhores desempenhos económicos como os países Escandinavos ou a Alemanha, são aqueles que têm melhores desempenhos nos índices de inovação. E por fim, a Europa tem um problema demográfico que se tem vindo acentuar e que a imigração veio apenas mitigar em parte.
 
As soluções para a Europa

Em relação à dívida como grande parte da mesma é interna, a solução seria simplesmente eliminá-la em metade. A solução poderá ser radical, mas tal mecanismo era feito na Antiguidade perante situações de aperto social, ou seja, as dívidas perante o Estado eram cortadas ou mesmo eliminadas. Mais uma vez não falamos de dívidas que foram contraídas num regime de solidariedade ou favor, mas sim, usando de mecanismos contratuais puramente especulativos, inseridos numa economia de mercado cujas entidades visam o lucro e não o bem-comum. Em relação à mobilidade, a Europa terá de simplesmente de forma gradual, eliminar o automóvel das suas cidades e posteriormente num futuro mais alargado, do continente. Terá de apostar em transportes públicos mais omnipresentes e de qualidade, mas em paralelo impedir por via constitucional as greves neste sector. Terá de apostar também em melhor pedonalidade assim como melhorar de forma substancial a mobilidade ciclável para meios urbanos. Para viagens intercidades e transporte de mercadorias terá de apostar fortemente na ferrovia. O grande problema energético da Europa não está na rede elétrica, está antes nos transportes. A Europa terá de fechar as suas fonteiras comerciais ao extremo oriente, pois jamais conseguirá competir com os salários praticados nesses países, sendo que em acréscimo a Europa e o Ocidente estão a contribuir para a destruição do ambiente e da qualidade de vida de muitos países da Ásia, com aumentos enormes de poluição do ar e de extração de recursos. E por fim, os estados precisam de rever as leis laborais para dar mais incentivos à natalidade, como por exemplo o trabalho a tempo parcial e a eliminação completa da precariedade laboral. Para evitar ainda situações semelhantes à presenciada nos tempos correntes, todos os estados terão de colocar limites constitucionais à dívida, para que as suas economias não entrem nos denominados pontos instáveis.

Apenas assim, estou em crer, a Europa conseguirá singrar politicamente e ser pujante economicamente, oferecendo ainda qualidade de vida e prosperidade aos seus cidadãos.

João Pimentel Ferreira
Eng. Eletrotécnico e de Computadores,
ramo de Controlo, e cidadão da Europa

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