O paradoxo geofilosófico Berlinense


Fotografia tirada do lado de Berlim Ocidental ao muro em 1986
O muro de Berlim começou a ser edificado em agosto de 1961 com o propósito pragmático de tentar evitar a fuga de milhares de berlinenses para o lado ocidental da cidade. O fundamento oficial fornecido pelo governo da República Democrática Alemã (RDA) para a edificação do muro era que essa construção seria uma muralha anti-fascista pois a Alemanha Ocidental ainda não estaria completamente livre do Nazismo. O muro de Berlim era assim apresentado pelos seus edificadores como uma construção que havia surgido da vontade do povo socialista para evitar as influências fascistas provenientes do ocidente.

Bem sabemos que foi exactamente o contrário. O muro veio evitar uma já na altura emigração crescente para ocidente bastante acentuada. Nos anos cinquenta a emigração para a Alemanha Ocidental era bastante acentuada com centenas de milhares de pessoas a se deslocarem para ocidente e a fugirem da RDA. Todos os argumentos que nos foram facultados pelos meios de comunicação ocidentais ao longo da história da segunda metade do século XX, foram sempre os mais nobres e humanos: a busca da liberdade.

O povo da RDA viveria acorrentado, sob a égide de um sistema despótico socialista que não daria aos cidadãos a liberdade, esse desígnio tão ansiado pelo ser humano. Ora o paradoxo que quero com esta missiva salientar, é um paradoxo que nos remete para as questões iniciáticas e simbólicas da própria geografia da muralha berlinense e da cidade de Berlim aquando da existência do muro.

Berlim Ocidental completamente circunscrpita pelo muro
O cidadão da RDA vivia no extremo ocidental do mundo socialista. Para a sua direita tinha um vasto mundo a descobrir e a descortinar, caminhos libertários imensos a trilhar e a percorrer, pois desde Berlim até Vladivostok são cerca de oito mil infindáveis quilómetros. Esperava-lhe maravilhosas paisagens siberianas, planícies russas fantásticas e paradisíacas, maravilhosas colinas nos montes Urais, um mundo pela frente a descobrir, uma vastidão geográfica imensamente extensa e ampla. Mas o que é que o cidadão da RDA pretendia fazer? Pretendia fazer exactamente o contrário da concretização dos desígnios sacros da liberdade tão imensamente propalados pela média ocidental. O cidadão da RDA pretendia enfiar-se num buraco minúsculo rodeado por muralhas em todo o seu perímetro, e esse buraco chamava-se Berlim ocidental. Lembremo-nos que Berlim ocidental estava embutido dentro da RDA, ora então a parte ocidental de Berlim não mais era que um pequeno excerto de terreno completamente rodeado por muralhas altas e intransponíveis, um pequeno redil geográfico sem saída, nem fuga, um pequeno excerto de terreno confinado por um perímetro edificado com altos e espessos muros.

O que vos quero esclarecer meus caros cibernautas, é que o Berlinense oriental ao transpor o muro, não procurava a liberdade, procurava sim o dinheiro, nem procurava o reencontro fraternal com os seus familiares como muitas vezes se refere, pois os berlinenses ocidentais seriam sempre bem vindos na RDA. O Berlinense oriental ao transpor o muro procurava tão-somente a subserviência ao capital pois o que lhe esperava em Berlim ocidental era um espaço geográfico extremamente pequeno confinado por altas muralhas.

Eu, junto ao muro de Berlim, em maio de 2010
O berlinense que trespassava o muro procurava apenas um melhor nível de vida, mais dinheiro, mais panóplias consumíveis, melhores carros, um nível de vida mais alto e com uma maior obtenção de capital, o que por certo é legítimo. Agora rogo-vos que atentem para este paradoxo geofilosófico, pois nunca o berlinense oriental poderia procurar verdadeiramente a liberdade, pois se para leste tinha oito mil quilómetros de vastas e belas áreas até Vladivostok, porque pretendia o berlinense oriental enfiar-se num buraco restringido a meia dúzia de quilómetros quadrados cercado por muralhas enormes de betão?

Obviamente que os média ocidentais legitimavam sempre estes feitos como sendo uma forma legítima do cidadão alemão da RDA procurar a liberdade. Qual liberdade?! Enfiar-se num buraco geográfico quando tinha oito mil quilómetros para leste para descobrir. O que o cidadão procurava era dinheiro, nível de vida mais alto e melhores condições de vida, o que é legítimo, mas rogo-vos que não me invoquem o argumento da liberdade tão propalado pela comunicação capitalista do Ocidente.

Foi apenas um reflexo filosófico que quis partilhar com o mundo cibernético.

“There are many people in the world who really don’t understand what is the great issue between the free world and the communist world. Let they come to Berlin!”
Discurso de Kennedy “Eu sou um Berlinense” em Berlim a 26 de Junho 1963

“Is it the final achievement of human specie, freedom, if you put yourself inside a confined area of few square kilometres surrounded by tall concrete ramparts, which was West Berlin, when you have eight thousands kilometres far east to discover? Is that the philosophical and pure concept of freedom, or just the political one?”
Just my thought

8 comentários:

  1. Existem vários tipos de liberdade. Cada um valoriza uma mais que a outra. Para um adolescente se calhar a maior liberdade é ter Internet de alta velocidade de graça, para um andarilho é atravessar a Europa sem um Euro no bolso a pé.

    No texto o João debate basicamente duas: liberdade geográfica e liberdade económica.

    Certamente que nem todos os habitantes da Alemanha Oriental gostavam de ir ver os montes Urais e nem todos os da Alemanha Ocidental aprovavam a oferta excessiva de divertimento pago (cinemas, teatros, discotecas para gays, pornografia) existente em Berlim Ocidental.

    Mas é correto o governo escolher qual liberdade o indíviduo pode gozar? E um cego na RDA que sequer pode ver os montes Urais? Ou um aleijado que sequer pode ir aos montes Urais? Se calhar eles prefeririam uma liberdade mais mundana (económica) ao invés de uma liberdade geográfica, não é? E este desejo mundano os torna "menos nobres" ou algo do género?

    E analisando ao contrário: Quem realmente tinha mais liberdade geográfica ao nível mundial? Os da RFA ou da RDA?

    Você, ou o governo, até pode achar "mais lindo", "mais puro", "mais nobre" ir ver os montes Urais, mas e se eu não acho? E se eu prefio ir a um cinema ver filmes de Hollywood ou peças da Broadway? Tenho culpa de ser mais "mundano"? E tem o governo direito de limitar essa minha liberdade?

    No texto você escreve:"O Berlinense oriental ao transpor o muro procurava tão-somente a subserviência ao capital"
    E quem ficava? Era subserviente ao poder do estado, é isso? O poder do estado é mais nobre que o poder do capital?
    Eu ainda hoje tenho dificuldade em entender esta coisa de subserviência ao capital.


    A história do muro e das 2 Alemanhas muito me interessa. Recomendo vivamente o livro: A Queda do Muro, de Olivier Guez e Jean Marc Gonin.

    Um grande abraço.

    Marcos

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    1. Caro Marcos

      Perdão pela demora na resposta. Sim, é verdade, pode dizer-se que há a liberdade de pensamento (lede a Alegoria da Caverna de Platão), a de expressão, a geográfica e a económica. Considero que a lista está ordenada em função da importância de prioridades. No meu entender a liberdade económica é a menos importante na escala de liberdades. Prefiro ter liberdade para pensar, escrever e movimentar-me, do que ter liberdade para poder comprar bens de consumo que são completamente prescindíveis.

      Na Alemanha Oriental todos os cidadãos tinham acesso gratuito à saúde e educação, ora sem estes dois princípios básicos saciados por exemplo dificilmente consegue obter e usufruir das várias liberdades. Quando refiro "subserviência ao capital" refiro-me que muitas pessoas prescindem de coisas boas na vida, porque se vergam aos interesses do consumismo e do prazer hedónico, que normalmente têm uma relação com o dinheiro.

      Sobre esta matéria recomendo-lhe que leia este texto onde abordo essa questão.

      Cumprimentos

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  2. Caro João

    Obrigado pela resposta. Vou fazer alguns comentários:
    “Sim, é verdade, pode dizer-se que há a liberdade de pensamento (lede a Alegoria da Caverna de Platão), a de expressão, a geográfica e a económica. Considero que a lista está ordenada em função da importância de prioridades. No meu entender a liberdade económica é a menos importante na escala de liberdades. Prefiro ter liberdade para pensar, escrever e movimentar-me, do que ter liberdade para poder comprar bens de consumo que são completamente prescindíveis”
    Eu também prefiro poder pensar livremente do que comprar livremente. Comprar supérfluos e bens de consumo prescindíveis definitivamente não me dá prazer. Porém a liberdade económica não se resume a comprar coisas fúteis. Com liberdade económica há maior diversidade de produtos, maior poder de escolha do consumidor, produtos mais baratos e de maior qualidade. Basta ver o meu caso: sou brasileiro e o Brasil tem muito menos liberdade económica que Portugal. Adivinha onde me sinto mais respeitado como consumidor e onde encontro produtos melhores e mais baratos?

    “Na Alemanha Oriental todos os cidadãos tinham acesso gratuito à saúde e educação, ora sem estes dois princípios básicos saciados por exemplo dificilmente consegue obter e usufruir das várias liberdades.”
    Nada é gratuito, sempre alguém está a pagar. E na Alemanha Ocidental, como era a saúde e educação? Também era gratuito? Os cidadãos eram “mais burros” ou “mais doentes” na Alemanha Ocidental ou nos demais países capitalistas? Sinceramente não sei.
    Mas eu sou a favor da intervenção do governo na saúde e educação, apesar de ser liberal não sou anarco-capitalista.
    “Quando refiro "subserviência ao capital" refiro-me que muitas pessoas prescindem de coisas boas na vida, porque se vergam aos interesses do consumismo e do prazer hedónico, que normalmente têm uma relação com o dinheiro.”
    OK, é verdade. Mas essa é sua opinião, para essas pessoas as coisas boas na vida são compras num centro comercial e telemóveis de 700 euros. Que culpa elas têm? Foram bombardeadas pela publicidade a vida inteira para agir desta forma. E só porque você ou um partido político qualquer não apoia esses prazeres do consumo, é certo privar os demais?
    Não se esqueça que o Brejnev tinha uma coleção de carros importados.

    Cumprimentos

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    1. No meu entender caro Marcos, a liberdade económica a partir de certo ponto é contrária a muitas outras liberdades fundamentais, pois provoca enormes assimetrias sociais.

      Dou sempre o exemplo dos automóveis. Num país socialista a compra de automóvel só existia perante autorização prévia do Estado, para que houvesse regulação no número de veículos. Nos países capitalistas, a ideia de que quem não tem carro não é gente vingou, e hoje a sociedade ocidental capitalista sofre pesadas consequências por essa política: poluição do ar, sinistralidade rodoviária, ocupação do espaço público, destruição ambiental, etc. Devido a essa massificação automóvel, muitas outras liberdades de terceiros ficam em causa, como por exemplo a liberdade de movimento de pedestres, cuja política urbana não os contempla, ou a liberdade de movimento dos mais pobres que não têm dinheiro para ter carro e se deslocam apenas de transportes públicos.

      A Holanda é um excelente exemplo onde um Estado capitalista, para evitar os problemas acima referidos taxa fortemente os automóveis, regulando o sistema através da carga fiscal. Não deixa de ser também injusto socialmente pois só apenas alguns podem suster carros!

      Repare que não sou contra a liberdade económica enquanto princípio, só acho que nos dias de hoje, ela é levada ao extremo, provocando gritantes assimetrias sociais e pondo em causa outras liberdades fundamentais de terceiros.

      Eu defendo um Estado que restrinja a liberdade económica de um abastado, para que um pobre possa ter acesso à saúde ou educação! Este é o ponto!

      cumprimentos

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  3. Caro João,

    Sinceramente não sei se os países socialistas limitavam a compra do automóvel a pensar nas externalidades (poluição, etc). Trabalhei com uma engenheira romena e realmente na altura do socialismo diz ela, se uma família comprasse um 2º carro a polícia batia à porta para investigar de onde tinham dinheiro para tal compra, mas definitivamente não havia qualquer preocupação ambiental.

    Suíça, Singapura, Japão, Holanda e Suécia têm muita liberdade económica mas taxam pesadamente a compra, posse e uso do automóvel. Eu sinceramente sou mais a favor taxar o uso do carro (portagens, combustível, etc) do que a compra. Muitas famílias precisam mesmo de ter um carro. Pode ter certeza que promover o automóvel é o oposto à liberdade económica. Promover significa subsidiar e definitivamente isso não é liberdade econômica!

    O que que é assimetria? É o coeficiente de Gini? Posso lhe garantir que os países com mais liberdade econômica são menos assimétricos que ditaduras socialistas. Como havia dito, sou a favor da intervenção estatal na saúde e educação (e na regulação das externalidades e do mercado) e também mais impostos para quem pode mais.

    Para terminar: Liberdade econômica não significa "governo ajuda os ricos e fode os pobres", como muitos pensam. Liberdade econômica é não ajudar mas também não atrapalhar ninguém. Cada indivíduo decide para si como quer trabalhar, consumir, poupar para a reforma recorrendo ou não à segurança social, número de dias de férias, etc.

    Cumprimentos,

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    1. A limitação do número de veículos nos estados socialistas, tinha implicitamente esse mesmo propósito: limitar o tráfego e engarrafamentos, poluição do ar e sonora e ocupação de espaço público. Compare a Rússia dos tempos da URSS, e de agora, em termos de número de carros e veja as consequências que tal está a acarretar no país.

      Para que haja saúde e educação gratuita para os pobres, têm de haver impostos, impostos que são cobrados a quem tem dinheiro e rendimentos, ao ser-lhes cobrados impostos reduz-se-lhes a liberdade económica.

      Os EUA, país altamente liberal, são altamente assimétricos na distribuição de rendimentos, o mesmo com o Reino Unido por exemplo. Eu sou favorável que setores estratégicos da economia fiquem nas mãos do Estado, Estado esse que é administrado pelo governo, governo que em Democracia é eleito pelo povo. Assim, indiretamente, o povo controla os setores estratégicos da economia. A ganância e o nepotismo de alguns governantes têm destruído este encadeamento lógico, mas não deixa de ser um princípio que defendo.

      cumprimentos

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  4. "A limitação do número de veículos nos estados socialistas, tinha implicitamente esse mesmo propósito: limitar o tráfego e engarrafamentos, poluição do ar e sonora e ocupação de espaço público. Compare a Rússia dos tempos da URSS, e de agora, em termos de número de carros e veja as consequências que tal está a acarretar no país."

    Sinceramente não acredito que os governos socialistas tinham preocupação com as externalidades. Limitavam a compra de carro por questões ideológicas e não ambientais.

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    1. Ninguém faz as coisas por questões estritamente ideológicas. Por detrás da ideologia estão sempre resultados práticos tangíveis

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