Promove a bicicleta a (in)segurança rodoviária?


Esta é a questão basilar que deve ser debatida seriamente e sem sofismas. Na realidade, não posso deixar de discordar com as afirmações de vários membros da classe política e do setor da segurança rodoviária que tendem a colocar o ónus da responsabilidade nas vítimas dos sinistros rodoviários, visto que os dados estatísticos demonstram claramente que cidades que favoreçam políticas mais amigas de ciclistas e pedestres, são cidades que têm índices de segurança rodoviária muito superiores às demais. É intuitivo perceber que quando se promove acalmia de tráfego, quando se alargam os passeios e se diminui a largura das estradas destinadas a veículos motorizados, quando se colocam zonas de abrandamento de velocidades, quando se criam zonas partilhadas; todas estas medidas promovem invariavelmente melhorias nos índices de segurança rodoviária, para todos os utilizadores da via pública, automobilistas inclusive.

De facto, as políticas urbanas de mobilidade de atração de pedestres e ciclistas para as cidades, são as mesmas ou muito similares, às políticas de promoção da segurança rodoviária.

A segurança pelos números

A segurança pelos números é um conceito há anos conhecido pelos biólogos, na medida que a perigosidade para cada indivíduo, para determinada ação, tende a diminuir à medida que o grupo ao qual o indivíduo pertence, tende a aumentar em número de indivíduos. Tal fenómeno é aparentemente mais acentuado nos grupos que na natureza tendem a ser mais vulneráveis, ou que estão final da cadeia alimentar, como o caso dos peixes nos cardumes, ou das ovelhas nos rebanhos.

Princípio de Jacobsen

P. L. Jacobsen, num trabalho académico de 2003, faz a aplicação do princípio da segurança pelos números para o caso particular de pedestres e ciclistas. O autor aparenta demonstrar que quanto maior é o número total de quilómetros pedalados por bicicleta e caminhados a pé, menor é o risco por quilómetro para ciclistas e pedestres respetivamente. Considerando que pedestres e ciclistas fazem parte de grupos vulneráveis na "selva" que o trânsito e o tráfego nas urbes modernas representa, considerando as diferenças de massas e de energias cinéticas dos diferentes veículos que circulam na via pública, pode-se de certa forma, deduzir, que o princípio de Jacobsen, mais não é que uma generalização para a modernidade no espaço público, da lei mais geral e universal da segurança pelos números que os biólogos conhecem desde há anos, lei essa que rege os fatores de risco do indivíduo inserido num determinado grupo na natureza.

Mais km percorridos de bicicleta, no geral,
implica menos perigo por km.
Fonte: Safety In Numbers; Cycling UK.

Fonte: Wittink, Roelof, I-ce Interface for Cycling Expertise:
Planning for cycling supports road safety.
Gráfico elaborado em Matlab por José Marçal

Este último gráfico, surge de uma regressão não-linear com relação aos mínimos quadrados, tendo-se obtido a seguinte fórmula que relaciona a distância percorrida em bicicleta por pessoa-dia, com o número de fatalidades por espaço percorrido em bicicleta. A fórmula resultante, que interessantemente se aproxima da fórmula matemática referente à Lei de Smeed que veremos posteriormente, é aproximadamente a seguinte:


onde F é o número de fatalidades de ciclistas, k é o número de km percorridos no total em milhões de km e c é o número de km pedalados em média por ciclista-dia. A fórmula anterior, é, de uma forma simples, a fórmula que sintetiza o princípio de Jacobsen. À medida que a variável c aumenta, o rácio F/k diminui.

Nos dois gráficos acima, que provêm de fontes diferentes, podemos assim constatar que os dados demonstram, por conseguinte e tendo em consideração as premissas anteriormente mencionadas, que as melhores políticas para promover a segurança de ciclistas, não é de todo censurá-los ou incriminá-los por passarem sinais vermelhos ou não usar capacete, mas na realidade atrair mais ciclistas para as ruas. Os dados extraídos de diversos países mostram invariavelmente que quanto mais km se pedala, menor são as fatalidades por km percorrido. Ou seja, existe uma relação inversa entre a atividade ciclística e a sinistralidade rodoviária para esses mesmos ciclistas. Pelo contrário, após coligidos e combinados os dados sobre sinistralidade rodoviária com o número de km percorridos em alguns estados da União Europeia, constata-se que para o automóvel essa relação é mais dúbia.

Lei de Smeed

R. J. Smeed, na longínqua década de 1940, tentou efetuar a mesma correlação estatística para os automobilistas, plasmada na denominada Lei de Smeed. O autor apercebeu-se que à medida que o número de veículos automóveis registados subia, o número de fatalidades nas estradas não subia com a mesma proporção, deduzindo que, para cada motorista, a perigosidade deveria baixar à medida que haveria mais automóveis registados. A Lei de Smeed pode ser postulada de duas formas equivalentes:


em que F é o número de fatalidades na estradas num determinado ano, c é o número de carros registados num determinado país e p é a população desse país. A equação do lado esquerdo relaciona de forma não-linear, mas em qualquer caso crescente, o número total de fatalidades F com, quer a população p, quer o número de carros registados c. Ou seja, à medida que a população ou o número de carros registados aumenta, aumenta também o número de fatalidades na estrada. Mas na equação do lado direito, que é equivalente à do lado esquerdo, mas em que é colocado o número de fatalidades por carro, carro esse subentenda-se que é detido e conduzido por um condutor, repare-se que a relação deixa de ser crescente e passa a ser decrescente, devido ao facto de o número de carros c estar num denominador. Ou seja, à medida que o número de carros c aumenta, o perigo rodoviário para cada condutor, ou seja, o rácio F/c, tenderia a diminuir, de acordo com a referida lei.

Todavia, após extraídos os dados do Eurostat para a atualidade, foi-me muito difícil encontrar tal correlação. Recorde-se que Smeed teorizou tal lei na década de 1940, quando o número de veículos registados era menos de um décimo da atualidade. Indubitavelmente que a segurança automóvel melhorou consideravelmente desde então, mas tal deveu-se essencialmente à tecnologia e não propriamente ao princípio da segurança pelos números.

Mais km percorridos de carro, não implica de forma clara, mais segurança por km.
Fonte: Eurostat, tabela 1 e tabela 2.

Analisado o gráfico acima onde são consideradas as fatalidades por pessoa-km, percebemos que não existe relação clara e irrefutável, entre maior quilometragem de automóvel, e a probabilidade de um determinado automobilista ter um acidente ao longo de um km (não há dados para Portugal sobre quilómetros percorridos em média para cada automobilista e no total). Ou seja, a sinistralidade rodoviária devido ao automóvel por pessoa por km, aparenta não depender dos km percorridos por pessoa por dia, sendo que praticamente todos os países, à exceção de Áustria e Espanha, têm taxas de utilização do automóvel próximas dos 30 km percorridos em média por pessoa-dia, com sinistralidades variadas. Essa variação na sinistralidade poderá depender, estou em crer, de questões culturais e de respeito pelos códigos da estrada, ou de medidas de promoção da segurança rodoviária em cada país (compare-se por exemplo Itália e Suécia).

Energia cinética

Estas diferenças na segurança rodoviária entre a massificação da bicicleta e do automóvel não são de estranhar, pois a bicicleta por norma é um veículo cujo peso total com o passageiro deverá rondar em média os 90 kg, a uma velocidade em média de cerca de 15 km/h. Pelas leis da mecânica clássica, um automóvel de uma tonelada a 50 km/h tem uma energia cinética 120 vezes superior à da bicicleta com o seu passageiro. Num caso de atropelamento, sendo a energia cinética do veículo um fator preponderante para a severidade do sinistro, percebe-se facilmente que o risco de acidente com um automóvel é incomensuravelmente maior do que um acidente com uma bicicleta, por muito ousadas que sejam as manobras do ciclista.

Explica-se assim, que quanto maior é o número de pedestres e de ciclistas no espaço público, com o decréscimo da energia cinética total presente nas vias públicas, maior é a segurança rodoviária para todos os utilizadores do espaço público, independentemente da tecnologia dos veículos ou da infraestrutura. Não só, muitas vezes as viagens de bicicleta substituem muitas viagens de automóvel, como devido ao facto de o ciclista circular a uma velocidade mais lenta, tal força o abrandamento geral das velocidades no espaço público, aumentando por conseguinte a segurança. Ademais, quantos mais ciclistas circulam na via pública, maior pressão fazem as respetivas organizações para que sejam melhoradas as infraestruturas, e para que sejam conduzidas políticas de promoção de modos ativos, o que por sua vez, incrementa o número de ciclistas e a respetiva segurança rodoviária. E tal incremento da segurança, não se verifica apenas em termos globais, mas, de acordo com as premissas anteriormente apresentadas, aumentando também a segurança rodoviária por km percorrido.

Para confirmamos que a energia cinética é um fator deveras importante na severidade de um sinistro, podemos observar por exemplo a probabilidade de atropelamento mortal em embates de automóveis contra pedestres. A energia cinética depende linearmente com a massa e quadraticamente com a velocidade, ou seja depende do quadrado da velocidade. Este fator quadrático, faz com que a partir de certa velocidade, pequenos incrementos na velocidade, tenham grandes incrementos na energia. Não é de estranhar então, que a probabilidade de um acidente com um automóvel ser fatal em várias situações, obedece a um fator muito semelhante a um fator quadrático a partir de determinada velocidade, como pode ser visto no seguinte gráfico.

Probabilidade de fatalidade em função da velocidade,
para vários tipos de sinistros.

Conclusão

À medida que o número de ciclistas e pedestres aumenta no espaço público, diminui o risco por km para cada um deles. O mesmo paralelismo não pode ser aplicado ao automobilista de forma tão clara e evidente. Ou seja, mais ciclistas e mais pedestres na via pública, independentemente de ações terceiras, em traços globais, implica mais segurança.

Faz-se por conseguinte um apelo a todos os membros da classe política e da classe municipal dirigente, principalmente aos agentes públicos ligados ao setor da segurança rodoviária, para que atentem para a estes dados que não podem de todo, no meu entender, ser ignorados. Os dados estatísticos mostram de forma clara, que a forma mais eficaz e com resultados mais tangíveis para aumentar os índices de segurança rodoviária nas cidades, é a acalmia de tráfego e o abrandamento de velocidades, reduzindo a preponderância e a hegemonia que os automóveis têm nas zonas urbanas.


João Pimentel Ferreira

Engenheiro;
Ex-dirigente da MUBi - Associação pela Mobilidade Urbana em Bicicleta;
Residente na Holanda e utilizador diário da bicicleta como modus movendi.

1 comentário:

  1. Aónio Eliphis, redator neste espaço cibernético, pronunciou-se aqui contra as declarações do presidente da ANSR, Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária. Quero deixar bem vincado, que embora partilhe este espaço com outros autores, não subscrevo de todo o conteúdo nem muito menos a forma como expressou as suas ideias. A calúnia, a difamação e a injúria não fazem de todo parte da minha literacia, principalmente desde que fui acusado de difamação por me ter excedido num determinado texto, do qual hoje me arrependo. Tal como em qualquer jornal que tem uma política editorial, também este blogue obedece a uma política autoral, e um dos magnos princípios dessa mesma política é a Liberdade, com a qual me identifico vivamente. Todavia não posso identificar-me com a calúnia e difamação, principalmente contra membros da praça pública e dirigentes de órgãos administrativos do Estado. A forma como Aónio Eliphis se expressou, além de rude e inapropriada é caluniosa e insinua afirmações extremamente gravosas contra a honra na pessoa do Dr. Jorge Jacob, colocando mesmo em causa os seus direitos morais. Mas tal como um jornal que obedece a políticas editoriais, também os jornais têm espaço de opinião próprias, cujo conteúdo é de estrita responsabilidade dos autores. É nesse espírito também que este blogue deve ser encarado.

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