Son[h]o


Do sonho dos tormentos
da cama dos sentidos
da esperança, sentimentos
da vida dos perdidos

Mundo, sensação
Esperança, quem te viu
Quem te vê com o coração
Foi um mundo que ruiu

Quem não vê e não quer ver
Não verá quem está defronte
O coração diz para esquecer

Para combater os mares e o monte
O impulso, para escrever
Cego, vislumbrarás o horizonte

--//--

Há sereias e sentidos
Pulsão a renascer
Libidos perdidos
que não haviam ao nascer

Neurónios constrangidos
O limbo diz para escrever
que os desejos reprimidos
dou-te-os para ninguém ver

Há quem veja na caneta
um falo, um fuste que se vem
A tinta jorra nesta greta

entre linhas do além
Do caderno, sou quem tecla
as teclas do desdém

--//--

Rios, mares e lagos
Réstias de navegante
Seios e olhos largos
duplicidade fulminante

Mamilos tão amargos
Suor dum verão escaldante
Destroços fulminados
Estocada tão distante

Quem não vê e não perscruta
Nada vê pois não quer ver
Observo ao largo a gruta

Um mineiro a se entreter
Freud, não sou puta
Tão-só a psique a verter!

--//--

Quem não vê e quem não viu
Vê que o sono é um sonho
Há gente que descobriu
que é um [h] que lhe ponho

O sonho é sono em fuste
Uma [h]aste tão vivida
Um sonho não é um traste
É um códex da vida

Amálgama do sentido
Mixórdia da experiência
do dia precedido

Estímulo com latência
desejo reprimido
Repto da inconsciência

--//--

Um sonho é tão disforme
tal como o é a doçaria
homónima e não conforme
com a trigonometria

Que o pudor contorne
a bem da Alegria
E num Poema uniforme
já há sonho, há magia

O sonho distorce o mundo
E sexualiza cada ente
Distorce o que é imundo

para bem do consciente
é a catarse do profundo
a cada noite, na tua mente!

O automóvel é um sorvedouro de espaço público


Cruzamento da R. Marquês da Fronteira com a R. Artilharia 1; em Lisboa
Mais de 2/3 (área a vermelho) do espaço público
é destinado ao usufruto quase exclusivo do automóvel

Um dos enormes malefícios da hegemonia do automóvel das nossas cidades, independentemente das questões ambientais, de segurança, da deterioração urbana ou do ruído, é o facto, de que o automóvel é um enorme sorvedouro de espaço público, quer para circulação, quer para estacionamento na via pública.

Alguns estudos aparentam demonstrar que em média, nas urbes congéneres à cidade de Lisboa, mais de 2/3 de todo o espaço público, serve apenas para saciar as necessidades do automóvel. Apesar de não ter efetuado um estudo exaustivo para a caso de Lisboa, todavia, com a ajuda de imagens de satélite e com processamento digital de imagem, pude comprovar na primeira pessoa, que por exemplo, a praça sita no cruzamento entre a Rua Marquês de Fronteira e a Rua Artilharia 1 (imagem acima), tem uma área pedonal, que representa menos de 1/3 da área pública total. Já todavia, mais de 2/3 da área pública total da referida praça, está alocada apenas à circulação e estacionamento de automóveis. 

Na última análise considerei quer o espaço alocado para circulação de veículos motorizados, quer o espaço para estacionamento, visto que a referida praça aparenta ter também lugares para estacionamento automóvel. Podemos em acréscimo efetuar uma contabilidade cartográfica municipal simples de apreender. De acordo com os regulamentos municipais, um lugar de estacionamento na via pública deverá ter, aproximadamente, doze metros quadrados de área. Se considerarmos, por aproximação, que Lisboa, durante um de dia de semana tem um parque automóvel de 700 mil veículos, concluímos, que caso quiséssemos estacionar todos estes veículos na via pública, necessitaríamos de uma área de 8,4 quilómetros quadrados. 

Esta hipotética área (8,4 quilómetros quadrados), apenas para estacionamento na via pública de todos os automóveis que existem e entram diariamente na cidade, tendo a referida área lugares individuais dispostos lado-a-lado, frente-a-frente, como numa matriz; teria em termos de superfície, pouco menos quilómetros quadrados que tem a maior freguesia de Lisboa, que é Belém (10,43), e seria maior que as áreas das freguesias de Benfica (8,03) ou dos Olivais (8,09), duas das maiores freguesias da cidade. E falamos de estacionamento para um veículo, que está parado em média, cerca de 95% do seu tempo de vida útil.

Por seu lado, a edilidade de Lisboa nos últimos anos tem tentado solucionar este problema, não por simplesmente restringir o uso do automóvel na cidade, mas por construir parques de estacionamento subterrâneos, transferindo os seus enormes custos de construção, para todos os munícipes através da carga fiscal municipal. Estes parques são extremamente onerosos para o erário público, tendo um custo unitário por lugar de estacionamento de aproximadamente vinte mil euros; sendo que esse custo não é de todo comportado pelos seus utentes.

Recordo em acréscimo, que um lugar de estacionamento automóvel comporta, em termos de espaço, em média, cerca de nove bicicletas. Considerando que cada automóvel em Lisboa, tem uma taxa de ocupação de cerca de 1,2 passageiros por veículo e que uma bicicleta transporta apenas uma pessoa, pode-se afirmar, que por cada dez metros quadrados de espaço público que são transferidos do automóvel para a bicicleta em termos de estacionamento, esse mesmo espaço, pode comportar o estacionamento do transporte individual de um número de pessoas nove vezes superior. É por conseguinte totalmente incompreensível, considerando ainda o custo por metro quadrado do espaço no município de Lisboa, quer para infraestruturas públicas quer empreendimentos privados, que um residente proprietário de um automóvel, pague tão-somente um euro por mês pelo lugar, ou um euro por ano por metro quadrado, de utilização permanente de espaço público municipal.

E pelo facto de o automóvel ser um ativo transacionável importado e que está parado em 95% do seu tempo, faz com que o espaço que lhe é alocado através das disposições municipais, do ponto de vista económico, represente tão-somente ineficiência e desaproveitamento de um recurso precioso em meios urbanos. Esse espaço poderia porventura ser um contributo para a promoção do desempenho económico local, com a utilização de esplanadas ou outros pequenos espaços comerciais. Outra possibilidade natural, seria a utilização desse espaço para a construção de espaços verdes ou campos de jogos, ou simplesmente espaço público livre de tráfego motorizado para usufruto dos cidadãos, aumentando assim a qualidade de vida dos munícipes. Um exemplo clássico que quase todos os lisboetas conhecem é o caso do Terreiro do Paço outrora um gigante parque de estacionamento, sendo que hoje é uma das praças mais emblemáticas da Europa, cartão de visita da cidade de Lisboa em todo o mundo.

Mas analisemos novamente quão oneroso é o espaço público por exemplo na cidade de Lisboa. A título de exemplo podemos analisar os terrenos da antiga feira popular junto à praça de Entrecampos. Esses terrenos representam cerca de 143 mil metros quadrados e na primeira hasta pública de venda dos terrenos o valor base foi de 135,7 milhões de euros, ou seja, cerca de 950 euros por metro quadrado. Já todavia um morador na cidade de Lisboa com automóvel tem direito, através do dístico da EMEL, a 12 metros quadrados de espaço público municipal por apenas 12 euros por ano, ou seja, um euro por metro quadrado por ano, um valor 950 vezes inferior. Seriam por conseguinte necessários 950 anos de estacionamento, para que um residente pagasse pelo uso do espaço à superfície o verdadeiro custo que ele tem quando é colocado à venda no mercado. Ou seja, a mesma entidade, a autarquia de Lisboa, que pede a um qualquer particular 950 euros por metro quadrado para que este construa um prédio, é a mesma entidade que apenas pede 1 euro por metro quadrado por ano, para que um particular residente use o espaço municipal para estacionamento.

É por isso imperativo, também devido a estas assimetrias e injustiças, devolver o espaço público ao seu propósito fundador, ou seja, de ser realmente de facto, público, isto é, para usufruto de todos os munícipes e não apenas um espaço semi-privativo daqueles que têm a possibilidade financeira de suster um automóvel. Porque é isso tecnicamente que significa o estacionamento na via pública, é uma privatização temporária do espaço público.

Como o automóvel provoca a deterioração urbana


A literatura indica que a hegemonia automóvel nas cidades
também tem como consequência a deterioração urbana.
Origem da foto: Pedro Szekely, Wikimedia
Há uma série de grupos cívicos, que na cidade de Lisboa e Porto e noutros pontos urbanos do país, se preocupam com alguma regularidade pelo espaço público das suas cidades, como os fenómenos do vandalismo urbano, os grafitos nas paredes, a insalubridade, o ruído, a pequena criminalidade ou mesmo a mendicância, manifestando amiúde essa preocupação nos meios de comunicação social e junto das respetivas vereações municipais.

Todavia, desconheço se por alguma razão política em particular ou por simples desconhecimento, desconsideram na maioria das suas publicações e manifestações públicas, os elevados efeitos negativos que a hegemonia do automóvel acarreta na cidade de Lisboa e noutras cidades do país, assim como os manifestos efeitos positivos para a cidade, que a promoção dos modos ativos, como andar a pé ou bicicleta, implicaria. Alguns trabalhos académicos (Asphalt Nation, J.H. Kay, Uni. da Califórnia; The city after the automobile, M. Safdie et al, Westview Press), principalmente provenientes de universidades cujos países têm elevadas taxas de motorização, aparentam demonstrar, que existe uma relação muito forte entre a hegemonia do automóvel em meios urbanos, e a deterioração urbana (urban decay).

Quando o automóvel domina o espaço público nas cidades, provocando aos transeuntes pedonais desconforto e insegurança, através da poluição, do ruído, da expropriação do espaço pedonal ou da velocidade; mas acima de tudo, provocando aos residentes, perda de identificação social e comunal com o bairro onde habitam, com a consequente perda de qualidade de vida no espaço público; o zelo que cada cidadão demonstra pelo espaço público, baixa drasticamente, tornando o bairro mais inóspito. E essa falta de zelo generalizada, repercute-se não só na deterioração do espaço público e do património, mas também no aumento da pequena criminalidade, onde se inclui o vandalismo. Ninguém sente, residente ou transeunte, a av. da República em Lisboa, com zonas onde chegar a possuir catorze vias paralelas para automóveis, como sendo “a sua casa”, porque é um lugar desumano, onde uma criança não pode brincar livremente, ou onde um idoso não pode circular sem necessidade de atenção redobrada.

É por isso compreensível, que por exemplo o fenómeno cultural dos grafitos nas paredes a que muitos simplesmente definem como vandalismo, faça parte de uma cultura suburbana de uma sociedade onde reina o espalhamento urbano, que por sua vez é extremamente dependente do automóvel. A humanização do espaço público, através da pedonalização das artérias, do acesso livre das mesmas em segurança a todos os residentes independentemente da idade ou capacidade locomotora, da restrição física ao automóvel e da devolução do espaço público aos cidadãos, tem como consequência invariável e inevitável, a qualidade de vida no espaço urbano, o zelo dos cidadãos pelo seu bairro, a preservação do património, a salubridade do espaço público e o abaixamento dos níveis da pequena criminalidade urbana. É o que a literatura aparenta demonstrar.

Por isso rogo a todos, a vereadores municipais e principalmente àqueles que se debruçam em movimentos cívicos locais, pela preservação do património arquitetónico das cidades, àqueles que defendem maior salubridade urbana e aos que realmente gostavam de sentir o seu bairro como sendo a sua casa, um local com qualidade de vida e não apenas um bairro dormitório; que não considerem a hegemonia do automóvel nas cidades, apenas como “um mal necessário para a mobilidade”, mas que a equacionem como uma das principais causadoras para a deterioração e decadência urbanas.

Das declarações de Wolfgang Schäuble sobre um eventual resgate a Portugal


Interpretar as palavras à letra do Ministro Alemão das Finanças Wolfgang Schäuble, sobre Portugal, realizadas a 28 de junho de 2016, é não só um exercício importante de política europeia, de análise de mercado de dívida soberana, mas acima de tudo, é um excelente exercício gramatical na língua de Goethe. Consideremos que a entropia chegou aos meios de comunicação social em Portugal, visto que as declarações em apreço chegaram já em formato incendiário, pois os próprios jornalistas portugueses, em vez de analisarem diretamente na origem a frase do interveniente, cingiram-se a reencaminhar o que outras agências noticiosas haviam comunicado.

Cita-se ipsis verbis o que Wolfgang Schäuble referiu em Berlim no dia 28 de junho, com referência às condições económico-financeiras de Portugal:

“(1) Portugal macht einen schweren Fehler, (2) wenn sie sich nicht mehr an das halten, (3) wozu sie sich verpflichten haben, (4) sie werden ein neues Programm beantragen müssen (5) und sie werden es bekommen (6) aber die Auflagen werden heftig sein.”

Vamos por partes, estando as proposições, ou seja, as orações que constituem a frase, organizadas por números de 1 a 6. A primeira pergunta que todos fizeram foi se a dita frase estaria no condicional ou simplesmente num qualquer tempo verbal no afirmativo. A resposta é que está, de facto, no condicional e tal é claro no uso da palavra wenn na proposição (2), sendo que quando se usa a palavra wenn no início de uma proposição, neste contexto, esta significa sempre em Alemão apenas se, representando por conseguinte uma frase no condicional. O verbo halten também presente na proposição (2), sendo reflexivo e seguido da preposição an, ou seja sich halten an, significa tão-somente em Português conter-se. Já também o verbo reflexivo sich verpflichten seguido da preposição zu, ou seja sich verpflichten zu na proposição (3) significa literalmente comprometer-se com. Interessante atestar que em ambas as línguas, ou seja entre Português e Alemão, ao contrário do Inglês, existe uma interessante similaridade nos verbos que são reflexivos.

A proposição (4) está no futuro pois faz uso do verbo auxiliar werden (ir). Na mesma proposição (4) encontramos o verbo que, erradamente, terá dado a ideia a muitos jornalistas que Portugal poderia estar mesmo na eminência de um novo programa de ajustamento, pois encontramos o verbo müssen. O verbo müssen é também um verbo auxiliar na língua alemã (Modalverb), e é um verbo que indica claramente uma obrigação e não apenas um dever (sollen). É congénere ao verbo em Inglês must. Assim, a expressão sie werden beantragen müssen significa eles vão ter (obrigatoriamente) que requerer. Na proposição (5) encontramos mais uma vez o futuro, fazendo-se uso do verbo werden com o verbo bekommen, ou seja obter.

Todavia, a palavra que no meu entender foi de facto inaceitável por parte de um membro de um governo estrangeiro e que deixa revelar um certo sentido despótico e demasiadamente hegemónico, encontra-se na realidade na proposição (6), quando faz uso do adjetivo heftig, ou seja, violento, associado ao substantivo no plural Auflagen, ou seja, imposições ou condições. Referir que as imposições serão violentas ou numa variante mais ténue que as condições serão severas, é de facto inaceitável por parte de um membro de um governo estrangeiro, independentemente da leviandade e perdularismo com que os diversos governos portugueses têm lidado com a questão das finanças públicas. Como referido, há naturalmente outras possibilidades para a tradução do adjetivo heftig além de violento, como por exemplo severo ou impetuoso, mas só pelo facto de o adjetivo violento ser de facto o mais comum, torna na verdade as próprias declarações de Schäuble diplomaticamente inaceitáveis.

Conclui-se por conseguinte que todas as outras traduções presentes na comunicação social estão distorcidas da forma literal como Wolfgang Schäuble se expressou. A tradução literal é então:

“(1) Portugal faz um grave erro, (2) se não mais se contiver, (3) com aquilo que se comprometeu; (4) vão ter que requerer um novo programa (5) e vão obtê-lo (6) mas as imposições serão violentas."