O automóvel é um sorvedouro de espaço público


Cruzamento da R. Marquês da Fronteira com a R. Artilharia 1; em Lisboa
Mais de 2/3 (área a vermelho) do espaço público
é destinado ao usufruto quase exclusivo do automóvel

Um dos enormes malefícios da hegemonia do automóvel das nossas cidades, independentemente das questões ambientais, de segurança, da deterioração urbana ou do ruído, é o facto, de que o automóvel é um enorme sorvedouro de espaço público, quer para circulação, quer para estacionamento na via pública.

Alguns estudos aparentam demonstrar que em média, nas urbes congéneres à cidade de Lisboa, mais de 2/3 de todo o espaço público, serve apenas para saciar as necessidades do automóvel. Apesar de não ter efetuado um estudo exaustivo para a caso de Lisboa, todavia, com a ajuda de imagens de satélite e com processamento digital de imagem, pude comprovar na primeira pessoa, que por exemplo, a praça sita no cruzamento entre a Rua Marquês de Fronteira e a Rua Artilharia 1 (imagem acima), tem uma área pedonal, que representa menos de 1/3 da área pública total. Já todavia, mais de 2/3 da área pública total da referida praça, está alocada apenas à circulação e estacionamento de automóveis. 

Na última análise considerei quer o espaço alocado para circulação de veículos motorizados, quer o espaço para estacionamento, visto que a referida praça aparenta ter também lugares para estacionamento automóvel. Podemos em acréscimo efetuar uma contabilidade cartográfica municipal simples de apreender. De acordo com os regulamentos municipais, um lugar de estacionamento na via pública deverá ter, aproximadamente, doze metros quadrados de área. Se considerarmos, por aproximação, que Lisboa, durante um de dia de semana tem um parque automóvel de 700 mil veículos, concluímos, que caso quiséssemos estacionar todos estes veículos na via pública, necessitaríamos de uma área de 8,4 quilómetros quadrados. 

Esta hipotética área (8,4 quilómetros quadrados), apenas para estacionamento na via pública de todos os automóveis que existem e entram diariamente na cidade, tendo a referida área lugares individuais dispostos lado-a-lado, frente-a-frente, como numa matriz; teria em termos de superfície, pouco menos quilómetros quadrados que tem a maior freguesia de Lisboa, que é Belém (10,43), e seria maior que as áreas das freguesias de Benfica (8,03) ou dos Olivais (8,09), duas das maiores freguesias da cidade. E falamos de estacionamento para um veículo, que está parado em média, cerca de 95% do seu tempo de vida útil.

Por seu lado, a edilidade de Lisboa nos últimos anos tem tentado solucionar este problema, não por simplesmente restringir o uso do automóvel na cidade, mas por construir parques de estacionamento subterrâneos, transferindo os seus enormes custos de construção, para todos os munícipes através da carga fiscal municipal. Estes parques são extremamente onerosos para o erário público, tendo um custo unitário por lugar de estacionamento de aproximadamente vinte mil euros; sendo que esse custo não é de todo comportado pelos seus utentes.

Recordo em acréscimo, que um lugar de estacionamento automóvel comporta, em termos de espaço, em média, cerca de nove bicicletas. Considerando que cada automóvel em Lisboa, tem uma taxa de ocupação de cerca de 1,2 passageiros por veículo e que uma bicicleta transporta apenas uma pessoa, pode-se afirmar, que por cada dez metros quadrados de espaço público que são transferidos do automóvel para a bicicleta em termos de estacionamento, esse mesmo espaço, pode comportar o estacionamento do transporte individual de um número de pessoas nove vezes superior. É por conseguinte totalmente incompreensível, considerando ainda o custo por metro quadrado do espaço no município de Lisboa, quer para infraestruturas públicas quer empreendimentos privados, que um residente proprietário de um automóvel, pague tão-somente um euro por mês pelo lugar, ou um euro por ano por metro quadrado, de utilização permanente de espaço público municipal.

E pelo facto de o automóvel ser um ativo transacionável importado e que está parado em 95% do seu tempo, faz com que o espaço que lhe é alocado através das disposições municipais, do ponto de vista económico, represente tão-somente ineficiência e desaproveitamento de um recurso precioso em meios urbanos. Esse espaço poderia porventura ser um contributo para a promoção do desempenho económico local, com a utilização de esplanadas ou outros pequenos espaços comerciais. Outra possibilidade natural, seria a utilização desse espaço para a construção de espaços verdes ou campos de jogos, ou simplesmente espaço público livre de tráfego motorizado para usufruto dos cidadãos, aumentando assim a qualidade de vida dos munícipes. Um exemplo clássico que quase todos os lisboetas conhecem é o caso do Terreiro do Paço outrora um gigante parque de estacionamento, sendo que hoje é uma das praças mais emblemáticas da Europa, cartão de visita da cidade de Lisboa em todo o mundo.

Mas analisemos novamente quão oneroso é o espaço público por exemplo na cidade de Lisboa. A título de exemplo podemos analisar os terrenos da antiga feira popular junto à praça de Entrecampos. Esses terrenos representam cerca de 143 mil metros quadrados e na primeira hasta pública de venda dos terrenos o valor base foi de 135,7 milhões de euros, ou seja, cerca de 950 euros por metro quadrado. Já todavia um morador na cidade de Lisboa com automóvel tem direito, através do dístico da EMEL, a 12 metros quadrados de espaço público municipal por apenas 12 euros por ano, ou seja, um euro por metro quadrado por ano, um valor 950 vezes inferior. Seriam por conseguinte necessários 950 anos de estacionamento, para que um residente pagasse pelo uso do espaço à superfície o verdadeiro custo que ele tem quando é colocado à venda no mercado. Ou seja, a mesma entidade, a autarquia de Lisboa, que pede a um qualquer particular 950 euros por metro quadrado para que este construa um prédio, é a mesma entidade que apenas pede 1 euro por metro quadrado por ano, para que um particular residente use o espaço municipal para estacionamento.

É por isso imperativo, também devido a estas assimetrias e injustiças, devolver o espaço público ao seu propósito fundador, ou seja, de ser realmente de facto, público, isto é, para usufruto de todos os munícipes e não apenas um espaço semi-privativo daqueles que têm a possibilidade financeira de suster um automóvel. Porque é isso tecnicamente que significa o estacionamento na via pública, é uma privatização temporária do espaço público.

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