Queremos as nossas cidades de volta!


Av. da Liberdade no princípio do século XX
Depois de ter recebido uma mensagem eletrónica, através da lista de correio-e a que pertenço que promove o uso das bicicletas e da mobilidade sustentável, onde se fazia referência a um aumento de atropelamentos graves de crianças em Portugal, houve um membro da mesma lista, que nos enviou uma hiperligação com um artigo extremamente interessante sobre como o automóvel começou a ganhar hegemonia nas nossas cidades, a partir essencialmente da primeira metade do século XX.

Para nos apercebermos, logo da importância que teve o automóvel no saque que fez ao espaço público nas cidades, há que entender alguma terminologia interessante que surgiu na língua inglesa, e um desses termos é jaywalker. Não encontrei tradução literal para a língua portuguesa do termo, mas o dicionário Inglês-Português da Porto Editora assim refere: “peão imprudente; peão que atravessa a rua fora da passadeira”

Mas é interessante apercebermo-nos que a própria palavra jaywalker, surge na língua inglesa como a união de dois verbetes, jay mais walker. Este último termo, já sabemos que significa caminhante ou somente peão em meio urbano, todavia é interessante que jay na América rural do princípio do século XX, significava literalmente algo como pacóvio, bimbo, rude, saloio ou mesmo estúpido ou idiota. Ou seja, durante muitos anos, os peões atravessavam calmamente as estradas nas cidades, as pessoas conviviam tranquilamente no seu bairro, todavia com o advento da “Era Automóvel” e com o aumento significativo de atropelamentos mortais, havia que “regrar” as pessoas e pô-las a andar somente nos passeios e a atravessar somente nas passadeiras. Aqueles que não o faziam, eram considerados os não-urbanos, ou melhor dizendo, os bimbos. Com esta terminologia de urbanidade e colocando as pessoas que andavam a pé “no seu devido lugar”, os automóveis passariam a poder circular livremente pelas cidades invadindo-as a seu bel-prazer.

A própria expressão "Era do motor", ou “Era Automóvel”, (do inglês motor age) foi cunhada pela própria indústria automóvel, como forma promocional e de mercadologia maquiavélica, para levar a opinião pública a pensar que estar contra o automóvel era estar contra o próprio progresso. O termo surgiu quando começou a haver enormes protestos devido à presença cada vez mais massiva de automóveis nas cidades, provocando acidentes graves, essencialmente com idosos e com crianças. A expressão apresentava-se como uma justificação para que houvesse mudança de costumes e de hábitos. A expressão apresentava-se como um fim retórico em relação aos tempos passados, com a mudança e a redefinição a um novo paradigma tecnológico que se apresentava; o mesmo tipo de expressões de mercadologia que são hoje usadas positivamente para banir de vez o tabaco em certos locais, ser tolerante com os homossexuais, tornar os combustíveis menos poluentes ou aumentar a segurança nos aeroportos.

Avenida da República, Lisboa, 15 vias para automóveis - Imagem Google

Durante 7000 anos as cidades, com as suas praças e as suas ruas e artérias, foram locais onde as pessoas e os cidadãos se juntavam, onde se moviam, onde comercializavam, onde as crianças brincavam, onde os animais domésticos vagavam. A indústria automóvel foi obrigada assim, através de campanhas e técnicas fortes de mercadologia, a conquistar e a roubar passo a passo, o espaço vital para os carros se movimentarem, roubando assim espaço às pessoas. E nunca olharam para trás. Se pensarmos que por exemplo a Av. da Liberdade em Lisboa, no século XIX simplesmente não tinha carros e era o Passeio Público, um enorme jardim para os lisboetas passearem, e que hoje, é um autêntico IP dentro da cidade, com 5 vias centrais de trânsito e seis vias nas laterias (circulação mais estacionamento) perfazendo 11 vias de trânsito, que nem a A1 sequer tem. Se pensarmos que a avenida da República e a sua continuação, o Campo Grande, foram locais de lazer para as pessoas, onde os lisboetas passeavam, e hoje têm zonas com 15 vias para automóveis, ou seja o equivalente a 2,5 vezes as que tem a A1, apercebemo-nos que as técnicas promocionais que adotou a indústria automóvel para fazer o saque ao espaço público nas cidades foi feroz, e foi eficaz. Muitas dessas campanhas passaram exatamente pela cinematografia de Hollywood, pois a título de exemplo, não há herói do cinema que se preze, a quem não associemos um bom carro, desde James Dean, a qualquer um dos James Bond.

Jaywalker, era então todo aquele que se atrevia a atravessar a rua fora da passadeira, sendo que jay, como já foi referido era um campónio saloio, assim sendo, qualquer um que tentasse atravessar a rua fora da passadeira era conotado como campónio saloio. As passadeiras serviam então exatamente, para canalizar os peões para certos pontos de atravessamento, que sendo escassos, permitiam assim ao automóvel “fluir” livremente pelo espaço público sem que fosse importunado pelos “campónios”.

Os acidentes de viação começaram então a ser cada vez maiores à medida que os carros invadiam as ruas em maior número, e um número cada vez mais elevado de pessoas morria todos os anos, essencialmente devido a atropelamentos. Nos primórdios, a responsabilidade criminal de qualquer das fatalidades, era sempre imputada ao automobilista (a parte mais forte) e nunca ao peão (a parte muito mais vulnerável), todavia a indústria automóvel através de campanhas maciças de “sensibilização” conseguiu mudar o paradigma social e legal, e de forma muito rápida. A mudança foi tão bem sucedida, que nos dias de hoje, temos o presidente do Automóvel Club de Portugal a referir publicamente e em bom som, que a culpa dos atropelamentos nas passadeiras é quase sempre dos peões, pois estes “atiram-se” para as passadeiras; até subcomissários da polícia a referirem que a culpa das crianças serem atropeladas não é dos automobilistas pois “estão viaturas estacionadas, surgindo as crianças de forma inesperada por entre os veículos”.

Os escuteiros eram contratados por clubes de automobilistas
para "orientar" e "regrar" as crianças para as novas regras da "Era do Automóvel"


Os jaywalkers, eram considerados pacóvios


Campanha de "sensibilização",
para que as crianças não brincassem nas ruas

Sinalética, para "regrar" os peões, por forma
a que estes não atravessassem a estrada como lhes apetecesse






Durante 7000 anos as cidades foram para as pessoas, desde a Ágora dos Gregos, o Fórum público dos romanos, as praças da Idade Média onde se transacionavam bens, até aos boulevards e as alamedas arborizadas para passeio que eram comuns em Lisboa no século XIX. Durante 7000 anos as pessoas faziam da cidade, das suas ruas, das suas artérias, das suas praças, um espaço onde confraternizavam, onde se moviam, onde caminhavam livremente, onde as crianças brincavam, onde jogavam à bola e ao peão e onde os animais domésticos vagavam sem serem desfeitos por máquinas de morte com uma tonelada de ferro em movimento. Pois digo-vos veementemente: a era mudará, queremos as nossas cidades de volta. Mudemos novamente o paradigma, criemos a “Era das Pessoas”, a “Era das Cidades”. Durante 7000 anos as cidades foram das pessoas, há que combater civilmente e ferozmente as latas mecânicas que ocuparam desenfreadamente as nossas cidades, façamos o contra-ataque: queremos as nossas cidades de volta!

10 comentários:

  1. Não há que ser tão extremista. Com os avanços tecnológicos, há medidas de segurança associadas. Lá por agora termos cometido excessos, não quer dizer que a regulação da época tenha sido assim tão má.
    É como o lidar com a electricidade. POde matar, mas é muito útil

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Meu caro, ABRA os OLHOS

      A eletricidade não mata por ano 1,26 MILHÕES DE PESSOAS
      É um ataque às Torres Gémeas por dia

      http://en.wikipedia.org/wiki/List_of_countries_by_traffic-related_death_rate

      Saudações

      Eliminar
  2. Mesmo assim não é o automóvel em si que mata. É talvez a democratização do seu uso. Sempre pensei que era incrível que tantas pessoas tivessem um poder destruidor tão grande nas mãos e que a sociedade conseguisse seguir assim. Por isso os números de mortes também não surpreendem.

    ResponderEliminar
  3. Ah, pois, não é a bomba atómica que mata, é o seu mau uso.
    Sabia meu caro que cerca de 1/3 das vítimas em acidentes de viação na Europa, são peões e ciclistas, provocados por veículos automóveis. Afinal parece que é o mau uso dos "outros"

    ResponderEliminar
  4. Esta a confundir finalidade (a de uma bomba é clara) com irresponsabilidade (do condutor, que pode usar o carro de forma ruim). Acho que necessita de moderar um pouco esses comentários. O tabaco, a televisão, o computador também são instrumentos que podem causar a morte (cancro ou obesidade) dependendo do uso.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Eu percebo os seus argumentos.
      Então diga-me por favor quais das atividades, sujeitas a eventuais irresponsabilidades (eletriciade, tabaco, computador, etc.) que têm 1,26 MILHÕES de fatalidades a cada ano?
      Não acha que são demasiados danos colaterais imputados à 'irresponsabilidade'?

      É tudo uma questão de números!
      A SIDA é mais problemática para a humanidade que a doença das vacas loucas, não só pela complexidade científica da patologia que provoca, mas porque é um vírus que ceifa milhões de vidas a cada ano.
      É tudo uma questão de números!

      E lembre-se que o tabaco, a TV, a eletricidade ou o computador, aquando da existência de irresponsabilidades, prejudicam ou matam o agente que é irresponsável, já os automóveis ceifam muitas vidas completamente inocentes.

      Cumprimentos

      Eliminar
    2. Para concluir: Obviamente que como técnico e como físico e/ou matemático, nada tenho contra um chassis com quatro rodas e um motor de combustão. Agora, confesso que adoraria ver a sucessão, formada pelo seu número a nível mundial, em que 'n' corresponde a um determinado intervalo temporal, ter como limite um valor igual ou inferior a zero.

      Cumprimentos

      Eliminar
  5. olha outro que deve ter tirado as licenciaturas como o relvas... tecnico? fisico?? matematico??? ahhh e poeta?!! lol... tanta coisa e nao es nada, que tristeza!

    ResponderEliminar
  6. Notícia fresquinha
    Nem as gentes de fé escapam a esta chacina
    http://www.jn.pt/PaginaInicial/Seguranca/Interior.aspx?content_id=2684099

    ResponderEliminar