Dos valores astronómicos do sistema de bicicletas partilhadas em Lisboa


A Câmara Municipal de Lisboa, através da sua empresa municipal, cujo acrónimo é EMEL, lançou recentemente a concurso público um projeto, de acordo com o publicado em Diário da República, para aquisição, implementação e operação do Sistema de Bicicletas Públicas Partilhadas na Cidade de Lisboa. O valor do preço base do procedimento, de acordo com o anúncio respetivo, é de exatamente 289040000 euros, ou seja, aproximadamente 29 milhões de euros. Embora o projeto tenha sido aplaudido por alguns, como interessado na matéria, parece-me que falamos de valores completamente astronómicos e totalmente incompreensíveis, para os objetivos subjacentes que o projeto visa resolver, que é, de uma forma simples, colocar os cidadãos e os turistas a usar a bicicleta na cidade de Lisboa, substituindo viagens de automóvel ou mesmo de transportes públicos, por viagens de bicicleta.

Comecemos com um comparativo interessante. Comparemos este valor astronómico, ou seja, vinte e nove milhões de euros, com as propostas do Orçamento Participativo (O.P.) de Lisboa, que têm impactos tangíveis locais muito mais eficazes, e com custos por norma até 150 mil euros. Neste caso, o valor em causa daria para 193 projetos em sede de Orçamento Participativo, até 150 mil euros. Recordo que no biénio 2014/2015 a autarquia de Lisboa aprovou onze projetos para execução em sede de orçamento participativo até 150 mil euros, mais dois com valores até 500 mil euros. Maximizando os valores de todos os projetos, podemos afirmar ainda que o projeto do O.P. custa aos cofres da autarquia, no máximo, 3,65 milhões de euros. Logo, conclui-se, que os vinte e nove milhões de euros, dariam para financiar cerca de oito anos de projetos de Orçamento Participativo, sendo que numa grande parcela dos mesmos, existem projetos relacionados com a mobilidade em bicicleta.

Mas podemos continuar no domínio dos comparativos. Um automóvel tem, em Portugal, um custo total por quilómetro de cerca de 32 cêntimos. Imaginemos, o caso extremo, em que a autarquia de Lisboa, dizia a todos os ciclistas urbanos, que lhes pagaria exatamente essa quantia de 0,32€ por cada km pedalado na cidade; ou seja, o ciclista além de poupar o eventual dinheiro por km que gastaria caso optasse por usar um automóvel, ainda receberia em acréscimo de apoios públicos 0,32€ por cada km pedalado de bicicleta. Pagando esses 32 cêntimos por cada km pedalado de bicicleta na cidade, a um qualquer ciclista urbano, teríamos, com 29 milhões de euros, 90,6 milhões de km, sensivelmente uma distância equivalente a 2200 voltas ao mundo através da linha de equador. Divididos por nove anos, que é prazo temporal de aplicação do projeto, teríamos cerca de 10 milhões de km por ano. Considerando que cada ano tem 255 dias úteis, ou seja, considerando que esse financiamento seria para movimentos pendulares, teríamos então cerca de 40 mil km por cada dia útil. Considerando ainda por hipótese que um ciclista urbano, em média, pedala 5 km por dia, teríamos dinheiro suficiente para pagar as viagens diárias de cerca de oito mil ciclistas urbanos. Consideremos ainda que Lisboa tem uma população de meio milhão de habitantes, e que tem uma repartição modal alocada à bicicleta de 0,5% (INE, Censos 2011); nesse caso podemos afirmar que existem aproximadamente 2500 ciclistas por dia, que usam a bicicleta em Lisboa como meio de transporte, e especialmente para movimentos pendulares. Caso a autarquia usasse o dito valor do projeto, pagando os tais 0,32€/km pedalado a todos os ciclistas da cidade, o mesmo dinheiro daria para pagar a deslocação diária de oito mil ciclistas durante nove anos, mais que triplicando o número de utilizadores de bicicleta na cidade de Lisboa.

Parece-me, através de cálculo aritmético, que vinte e nove milhões de euros para bicicletas partilhadas, é um montante extremamente exagerado, e revela a gritante iliteracia numérica de quem gere os domínios financeiros da cidade de Lisboa, revelando em acréscimo o total e infame desrespeito pelos dinheiros públicos. Virão futuramente, não tenhamos quaisquer dúvidas, e no meu entender com alguma razão, os sectários da austeridade e do rigor das finanças públicas, referir que este valor é magalómano, referindo em acréscimo dada a total ignorância da maioria dos economistas da praça pública quando se pronunciam sobre mobilidade e transportes, que a mobilidade em bicicleta é apoiada com dinheiros públicos, enquanto que a mobilidade em automóvel é taxada. Este tipo de medidas, cujo rácio custo/proveito, é extremamente duvidoso, reforça essa ideia generalizada para a opinião pública, que os automobilistas são demasiadamente taxados, quando na realidade é exatamente o oposto que sucede.

Eu não desvalorizo os ganhos económicos aparentemente intangíveis por se usar a bicicleta e tenho consciência que estes valores até estão próximos dos projetos congéneres de outras cidades europeias. Todavia, Lisboa não tem as infraestruturas para a mobilidade em bicicleta mais basilares, como lugares de estacionamento em segurança, ou ciclovias seguras e bem desenhadas, que custariam várias centenas de vezes menos. De referir que antes de ser ciclista urbano, sou cidadão, e vinte e nove milhões de euros, numa cidade sobre-endividada e com tantas carências sociais, é um valor astronómico e desumano. E o mais importante ainda com referência à temática da mobilidade, é que não é com este tipo de medidas, que as pessoas adotarão a bicicleta como modus movendi, pois as mesmas não resolvem o problema de fundo da mobilidade urbana na cidade de Lisboa, como a falta de segurança rodoviária no espaço público, problema que apenas se resolveria com fortes restrições físicas e legais ao uso do automóvel na cidade, cuja área de ocupação, considerando rodovia e estacionamento, estima-se, ultrapassa os 2/3 de todo o espaço público da cidade.

Relembro para concluir, que a EMEL sempre atravessou um problema sério de imagem pública, sendo extremamente mal vista pela população lisboeta. Recentemente a mesma empresa mudou o nome, sendo que o "M" no seu acrónimo, passou também a significar Mobilidade além de Municipal. Estamos então, parece-me de forma clara, perante uma imagem de charme da empresa em apreço, aquilo que na gíria anglo-saxónica se define por greenwashing, desta vez com dinheiros públicos. O mesmo tipo de mercadologia adotada pela BP, quando a sua cor oficial é verde, o seu logótipo um girassol, tendo todas as suas estações de abastecimento painéis solares, e tendo sempre uma gasolina verde ou eco. Ou o mesmo tipo de medidas que as empresas de comunicações e de serviços, quando nos requerem para aderirmos à fatura eletrónica, não porque pouparão custos com serviços postais, mas porque assim estamos a ajudar o ambiente (não estou contra a medida, o argumento é que é enganoso).

Os ciclistas urbanos, já estão, passo o plebeísmo, calejados, pois deslocar-se por entre uma selva de máquinas metálicas poluidoras em movimento, é já de si próprio uma tarefa estoica. Assim sendo, falo por mim, dispenso de forma veemente este tipo de caridade camarária, pois estou quase certo, que virão os ataques desmesurados, parcialmente com razão, de que os ciclistas urbanos e a bicicleta, são de forma desproporcional apoiados pelo erário público. Coisas muito mais simples são por norma muito mais eficazes. Procedam à efetiva acalmia de tráfego na cidade, forçando uma fiscalização efetiva no cumprimento dos limites legais de velocidade, quer com medidas físicas, quer com sistemas de radares; limitem, através da taxação e estacionamento, o uso do automóvel dentro da cidade, diminuindo por conseguinte a insegurança e os congestionamentos, visto que a sinistralidade é proporcional à quantidade de veículos motorizados na estrada; e diminuam a alocação de espaço público destinado ao automóvel.

Com estas simples, menos onerosas, e, admitamos difíceis, medidas, muitos mais ciclistas urbanos virão para a rua pedalar.

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