Deus foi ateu em 1755


O movimento ateísta internacional deu um enorme passo, poucos o sabem, com um fenómeno ocorrido em Lisboa em meados do século XVIII. Nessa maravilhosa manhã do dia 1 de Novembro de 1755, no dia de Todos-os-Santos, dos mais sagrados e relevantes para a cristandade, na mui devota e católica capital do reino português, um terramoto com magnitude de aproximadamente nove na escala de Richter, atinge a cidade de Lisboa. Os fiéis, por volta das nove horas e quarenta minutos da manhã, hora da ocorrência, estariam no culto dentro das igrejas e catedrais a orar ao Santíssimo lá no alto. Pois Deus todo-o-poderoso, o Omnipotente, das alturas, com tantos dias para escolher o Apocalipse, foi selecioná-lo logo no dia de todos os santos? Com tantos pontos no globo para arrasar e exterminar, porque não lançou Deus o caos e o dilúvio nas Arábias ou na Ásia, terras de hereges, ímpios e infiéis, e foi espoletá-los na mui crente e devota cidade de Lisboa? E no referido dia sacro, porque não estremecer o solo à tarde, hora do prazer e do ócio, considerando que a preguiça é pecado capital, e ativar o tremor de terra de manhã à hora da missa e do culto, no preciso momento em que os devotos a Si oravam? Assim, considerando que as igrejas e catedrais são os edifícios mais altos e pesados, pois são constituídos essencialmente de pedra, a matança e a carnificina tornaram-se "exemplarmente bíblicas" nos locais de culto, onde os devotos filhos oravam ao seu benévolo Pai. Voltaire, pois os locais nunca foram muito dados ao intelecto filosófico, perante tamanha tragédia postulou a verdadeira Oração, desta feita, lógica, ontológica e epistemológica, que fundou o ateísmo iluminista internacional contemporâneo: ou Deus não é omnipotente, ou se o é, é alguém muito macabro e perverso, tal como já postulava o paradoxo de Epicuro. Só alguém muito perverso e macabro tem prazer em ver sofrer aqueles que o amam. E se não é omnipotente, não é Deus, é pois apenas mais uma deidade "a la carte" como tantas outras, desde as da mitologia greco-romana às da mitologia nórdica.

Os tremores de terra são dos melhores argumentos para contestar a ideia impostora criada pelos homens da Idade do Bronze, de que existe um ser bondoso omnipotente nas alturas, que se interessa pelo bem-estar dos Homo Sapiens residentes neste rochedo chamado planeta Terra. Este planeta onde residimos está situado na zona habitável (zona de Goldilock, onde, por exemplo, a água toma o estado líquido) em torno de uma estrela mediana a que damos o nome de Sol, estrela essa situada numa galáxia com outras cem mil milhões de estrelas, de um Universo com outras cem mil milhões de galáxias. Já perdeu o fio à meada? Pois eu explico de forma mais terrena: há mais estrelas no Universo do que há grãos de areia em todos os desertos e todas as praias do nosso planeta; e querem-nos fazer crer os cristãos de que o Criador do Cosmos revestiu-se de Homo Sapiens há cerca de 2000 anos, cerca de 0,00005% do tempo desde que existe planeta Terra, para, na cruz, expiar os instintos primários da espécie reinante deste grão de areia? A própria noção antropocêntrica ou antropomórfica que a religião implica, manifestadas, por exemplo, no clássico geocentrismo, em santos e profetas ou em deuses com características e traços humanos, revelam que Freud tinha razão a propósito, isto é, o Homem é extremamente egocêntrico. A astronomia colocou o Homem no seu devido lugar, o que o obrigou a ser, coletivamente, aquilo que a religião, apesar de o apregoar nunca o foi verdadeiramente: humilde. Pelo contrário, a religião advoga a soberba e o narcisismo coletivos, a de que o Cosmos foi desenhado para nós, quando todas as evidências apontam em sentido contrário. E quando tomamos conhecimento, conscientemente, que somos coletivamente enquanto Humanidade, apenas um mero grão de areia num deserto, matematicamente falando, ficamos cientes que tal facto exige-nos a verdadeira humildade.

Quando se pergunta aos cristãos e demais crentes por que motivo Deus permite tanto sofrimento e miséria, dizem-nos amiúde que tal acontece, tal como postulou um devoto amigo meu, porque "Deus é um cavalheiro, só entra no coração dos Homens perante convite". Quando perguntamos por que motivo bebés inocentes morrem, quando o livre arbítrio é ainda inexistente, os mais radicais e infames referem que a culpa reside nos pecados dos pais. Os terramotos resolvem todo e qualquer problema teológico, pois ceifam castos e ímpios, debochadas e pueris, clérigos e plebeus, velhos e bebés, cristãos e muçulmanos, virgens e meretrizes, santos e pecadores. Os países cujos povos do Livro se dedicam mais às questões de fé para evitar os terramotos, como a Turquia, o México ou o Irão, têm amiúde tragédias nas suas cidades e edificado que levam à morte de milhares de inocentes. Já os povos laicos, que se baseiam na ciência e não em preces, como é o caso do povo japonês contemporâneo, conseguem lidar com o fenómeno dos terramotos de forma muito mais racional, salvando assim, milhares de vidas humanas. É que se Deus está nas alturas, será então o Diabo das suas catacumbas a agitar o movimento das placas tectónicas? E se assim o é, por que motivo o Diabo mata menos no laico e profano Japão, do que o faz nos devotos México e Irão? Demos graças a Deus por termos tido por Lisboa em 1755 o mação Sebastião José, mais conhecido por Marquês de Pombal, que, com técnicas construtivas bastante avançadas para a época, como a gaiola pombalina, apercebeu-se que para evitar tragédias futuras, mais do que uma questão de Fé, o país e o povo precisavam de um regente que se guiasse pela Ciência positivista, pela Lógica e pela Razão. Que assim o seja, ou seja, Amén!

1 comentário:

  1. https://www.euroscientist.com/have-we-reached-the-twilight-of-the-fundamental-science-era/

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