O marxismo e a neoburguesia


Segundo Karl Marx, filósofo alemão que gerou os princípios económicos e filosóficos que deram origem ao socialismo e ao comunismo, o burguês é aquele que detém o meio de produção, e cujas sociais preocupações são o valor da propriedade e da preservação do capital, a fim de garantir a sua supremacia económica na sociedade. Há que tentar perceber, a época histórica em que Marx escreve o seu “Capital”. Para Marx, a Lei, a Moral e a Religião, estão todas ao serviço da classe burguesa, que imiscuindo-se com o capital no poder legislativo, na política das religiões e nas doutrinas filosóficas, fazem com que os burgueses, mantenham assim a supremacia económica sobre o povo, este último acorrentado com as suas doutrinas sociais.

Marx, escreveu o seu Capital e o seu Manifesto Comunista, numa época, onde havia na Europa e na América, grandes assimetrias sociais, daí a génese da luta de classes estar sempre bem vincada na sua doutrina. No seu manifesto comunista refere que “a sociedade divide-se cada vez mais em dois vastos campos opostos, em duas grandes classes diametralmente opostas: a burguesia e o proletariado. A burguesia desempenhou na história um papel eminentemente revolucionário. Onde quer que tenha conquistado o Poder, a burguesia destruiu as relações feudais, patriarcais e idílicas. Ela despedaçou sem piedade todos os complexos e variados laços que prendiam o homem feudal a seus "superiores naturais", para só deixar subsistir, entre os homens, o laço do frio interesse, as cruéis exigências do "pagamento à vista". Afogou os fervores sagrados do êxtase religioso, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-burguês nas águas geladas do cálculo egoísta. Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca; substituiu as numerosas liberdades, conquistadas com tanto esforço, pela única e implacável liberdade de comércio. Em uma palavra, em lugar da exploração velada por ilusões religiosas e políticas, a burguesia colocou uma exploração aberta, cínica, direta e brutal.” 

Parece-me que este excerto é perfeitamente atual, pois o capitalismo moderno, reinado por uma burguesia que atingiu uma supremacia bem maior, singrou essencialmente através da usura e dos jogos financeiros especulativos de casino, definhando os povos, os estados e as pessoas com juros agiotas sempre no cálculo interesseiro e egoístico. Nunca a burguesia tinha atingido um estatuto tão grande, como atingiu hoje, nem nos tempos de Marx. E tal, está plasmado num estudo levado a cabo pela Universidade das Nações Unidas que refere que 1% dos mais ricos no mundo possui 40% de toda a riqueza mundial, e que os 10% mais ricos detêm 85% da riqueza total da humanidade. 

O neoburguês moderno foi ainda mais eficaz na sua sede de capital, do que nos tempos de Marx no longínquo séc. XIX, pois usa de uma ferramenta eficaz, que Marx nunca imaginaria que poderia ser usada de forma tão vasta, contra os estados e os povos: os juros. Os juros funcionam no sistema financeiro como a gravidade funciona na física, ou seja, tal como a força gravítica atrai os corpos entre si, sendo essa força proporcional à sua massa, fazendo com que grandes concentrações de massa, atraiam outras grandes quantidades de massa que sobre aquelas orbitam, também os juros fornecem a componente atrativa que o capital há muito pretendia. Na doutrina marxista, o burguês, conseguia a supremacia económica através da exploração do proletariado e da aquisição de propriedade, resumindo todos os valores ao seu valor comercial, mesmo os que outrora não eram mensuráveis, como os valores morais. O burguês, explorando o proletariado, e fazendo do trabalhador mais uma peça da maquinaria produtiva, que visava unicamente o lucro, atingia a supremacia económica sobre os demais. Quanto mais manual, monótono e enfadonho era o trabalho, mais mal pago era. A troco de trabalho quase escravo, o burguês retribuía ao trabalhador com capital, que este usava reiteradamente para alimentar o burguês, comprando comida a retalho, e todos os itens de que o proletário necessitava para a sua sobrevivência.

Mas nesta lógica que Marx apresenta tão cristalinamente no seu manifesto, não entra o item da equação que torna o despotismo burguês, ainda mais maquiavélico, mais despótico e opressor, e que nem o próprio Marx julgou que poderia atingir tamanhas dimensões: os juros. Hoje os estados definham a passos largos com juros agiotas, com dívidas dificílimas de pagar. Em Portugal, o que se paga de juros, equivale ao que se paga para o Serviço Nacional de Saúde, ou seja, a saúde de todos os cidadãos portugueses, onde se inclui desde medicamentos, maquinaria médica e pagamento de salários a milhares de pessoas.

Os juros, a arma do capital

Para se entender como funcionam os juros há uma metáfora extremamente interessante para percebermos como funcionam, particularmente os denominados juros da dívida soberana.

Imaginemos que há cinco náufragos numa ilha. A ilha é a metáfora para o planeta. Os náufragos trabalham normalmente, produzem os seus bens necessários, o suficiente para a sua sobrevivência e a sua sustentabilidade. Todavia, as cinco pessoas que naufragaram na ilha, precisam de algo que sirva de troca, para as suas relações económicas, poderiam usar conchas, mas usarão capital, que lhes foi emprestado por um barqueiro que é banqueiro, que no dia 1 de janeiro de certo dia foi à ilha emprestar-lhes 100€ para os pôr a circular. A taxa de juro cobrada pelo banqueiro era de 5%. No final do ano, o banqueiro veio buscar o que tinha direito, ou seja 5% de 100€, e veio buscar os seus 5€. Como a ilha é um meio fechado que não produz dinheiro, não havendo também em princípio inflação, ficam a circular na ilha apenas 95€. No final do segundo ano, o banqueiro vem buscar os outros 5€ a que tem direito, e fica a circular na ilha apenas 90€. Apesar de os náufragos terem pago os juros, ainda devem os 100€ iniciais. Ao fim de 18 anos, há apenas 10€ a circular na ilha e os náufragos ainda devem 100€. Nessa altura, o banqueiro pede aos náufragos para que lhe paguem o que lhe devem, e como estes só têm 10€, o banqueiro penhora todos os bens da ilha, ficando os náufragos como seus dependentes, passando depois para a uma próxima ilha.

Se todavia os náufragos decidirem pedir emprestados 5€ para pagar os juros, a que o banqueiro acede de imediato, pagarão desses juros “apenas” 5% ou seja 25 cêntimos. Só que no final do primeiro ano já deverão 105€ e os 5% a aplicar no segundo ano já não será sobre os 100€, mas sobre os 105€ o que dará 5,25€. Significa que no final do segundo ano já deverão 105€ mais 5,25€ o que dará 110,25€. Este comportamento obedece aquilo que em matemática se denomina por progressão geométrica, e tem um comportamento exponencial quando o empréstimo atinge algumas dezenas de anos, como é o caso das dívidas soberanas.


Apesar de a taxa ser “baixa”, ou seja “apenas” 5%, ao fim de 40 anos o devedor já deve sete vezes mais aquilo que pediu. Este comportamento exponencial das sucessões geométricas explica como é que a neoburguesia através dos juros conseguiu a peça fundamental que fez com que o capital atraísse de forma mais forte e vincada maiores quantidades de capital, aumentando assim iniquamente as assimetrias sociais. Se nos finais do séc. XIX, já se lidavam com juros e os estados já tinham dívidas, nunca as dívidas atingiram tamanhas proporções como atingiram nos finais do séc. XX. Se a burguesia já havia amealhado capital nos finais do séc. XIX, o que levou Marx a escrever o seu manifesto comunista, com a banalização dos juros, a burguesia teve a arma que lhe permitiu obter dividendos gigantescos, pois com rácios de sete vezes mais capital em quarenta anos, fez com o capital que de certa forma nos dias de hoje mensura a riqueza, ficasse concentrado em muito poucas famílias. Se até ao séc. XIX o capital, até estava de certa forma disperso por vários aristocratas pelo mundo, pela igreja e por diversos pequeno-burgueses, sendo que a burguesia da altura se preocupava essencialmente em amealhar património e capital através da opressão do proletariado; a neoburguesia, fez do cidadão de classe média um pequeno burguês, cujas maiores ambições são ter património, como carro, telemóvel e outros bens transacionáveis, e cuja moeda de troca para obtenção desses pequenos patrimónios é o crédito, cujos juros alimentarão a grande neoburguesia.

Os juros, funcionam assim como um concentrador de capital. Podemos eventualmente pensar localmente, e tal exemplo é dado pelos economistas como exemplo benigno. Ou seja, um pequeno comerciante que quer expandir o seu negócio, pode pedir um empréstimo e ao aumentar a faturação, pode pagar o que deve ao banco, ainda tendo lucro. Todavia pensamos apenas localmente, em torno de um caso específico. Todavia globalmente, os juros provocam sempre a concentração de capital, em torno de grandes aglomerados capitalistas. Os juros funcionam para o capital, assim como o magnetismo funciona para os metais.

O valor de troca, a arma da burguesia no séc. XIX

Interessante asseverar que na doutrina de Marx, havia o valor de uso e o valor de troca. O valor de uso, era o real valor que o item tinha e o valor de troca era o valor que item ganhava no mercado. O ar tem um valor de uso elevadíssimo, pois é vital para a sobrevivência dos seres, mas tem um valor de troca muito baixo, pois ninguém lhe dá muito dinheiro por ar, já os diamantes têm um valor de troca altíssimo mas um valor de uso extremamente baixo, pois em princípio não tem qualquer utilidade, a não ser a mera ostentação. A burguesia, no séc. XIX conseguiu implementar muito bem o conceito de valor de troca, através do capital, onde teoricamente, um diamante, compra milhões de metros cúbicos de ar, vitais ao ser humano.

Marx referia que “a burguesia despojou de sua auréola todas as atividades até então reputadas veneráveis e encaradas com piedoso respeito. Do médico, do jurista, do sacerdote, do poeta, do sábio fez seus servidores assalariados. A burguesia rasgou o véu do sentimentalismo que envolvia as relações de família e reduziu-as a simples relações monetárias. Impelida pela necessidade de mercados sempre novos, a burguesia invade todo o globo. Necessita estabelecer-se em toda parte, explorar em toda parte, criar vínculos em toda parte. Devido ao rápido aperfeiçoamento dos instrumentos de produção e ao constante progresso dos meios de comunicação, a burguesia arrasta para a torrente de civilização mesmo as nações mais bárbaras. Os baixos preços de seus produtos são a artilharia pesada que destrói todas as muralhas da China e obriga a capitularem os bárbaros mais tenazmente hostis aos estrangeiros. Sob pena de morte, ela obriga todas as nações a adotarem o modo burguês de produção, constrange-as a abraçar o que ela chama civilização, isto é, a se tornarem burguesas. Em uma palavra, cria um mundo à sua imagem e semelhança.” A este sistema de despotismo do capital, mais feroz e mais eficaz que qualquer exército, os intelectuais capitalistas denominam por “globalização”.

Marx refere ainda que “com o desenvolvimento da burguesia, isto é, do capital, desenvolve-se também o proletariado, a classe dos operários modernos, que só podem viver se encontrarem trabalho e que só o encontram na medida em que este aumenta o capital. Esses operários, constrangidos a vender-se diariamente, são mercadoria, artigo de comércio como qualquer outro; em consequência, estão sujeitos a todas as vicissitudes da concorrência, a todas as flutuações do mercado. As camadas inferiores da classe média de outrora, os pequenos industriais, pequenas comerciante, e pessoas que possuem rendas, artesãos e camponeses, caem nas fileiras do proletariado: uns porque seus pequenos capitais, não lhes permitindo empregar os processos da grande indústria, sucumbem na concorrência com os grandes capitalistas; outros porque sua habilidade profissional é depreciada pelos novos métodos de produção. Assim, o proletariado é recrutado em todas as classes da população.”

O capital, o crédito, a publicidade e o consumismo; as armas da neoburguesia 

Ora a neoburguesia dos tempos modernos tornou-se bem mais eficaz nos seus métodos. Consciente que os anseios do outrora proletariado, era fazer ele também parte da burguesia porque de certa forma, os invejava, a neoburguesia criou os canais para que cada homem proletário se tornasse ele próprio um pequeno-burguês. Mas para que estes pequeno-burgueses alimentassem a grande burguesia, foi criada mais massivamente a chamada sociedade de consumo, onde os pequeno-burgueses têm como único objetivo a posse irracional de itens que normalmente não precisam, cujo ímpeto primário da compra provém da publicidade e onde normalmente o crédito está bem presente. A grande neoburguesia, assim através das sociedades do consumo, tal como já se começava a vislumbrar nos finais do séc. XIX, e também no séc. XX, acumulando com o crédito, atraiu o proletariado para a sua rede, fazendo-o crer que também ele pode chegar à burguesia, esse topo piramidal da sociedade, auge da felicidade humana. A burguesia consegue-o essencialmente através de uma arma poderosa: a publicidade.

A publicidade massiva e em larga escala, faz mostra dos produtos dos neoburgueses, incutindo o estímulo primário da necessidade de algo que na realidade o indivíduo não precisa. O indivíduo sustém assim o burguês, trabalhando arduamente para suster a burguesia. No campo da mobilidade este caso é tragicamente paradigmático, pois é muito plausível que o português médio trabalhe cinco meses do ano, só para pagar as despesas associadas ao seu carro, sustendo assim gasolineiras, fabricantes automóveis, seguradoras e entre outras. A neoburguesia conseguiu assim, convencer o comum dos cidadãos que também ele pode atingir essa supremacia, mesmo que estatisticamente esse alcance seja quase impossível, tornando-o assim o cidadão escravo das suas mais poderosas tenazes: o capital, o consumo, o crédito e a publicidade!

E se para Marx, até a religião estava ao serviço da burguesia, pois o capital imiscuía-se nos bons cosutmes, na moral e na devoção religiosa e serviçal ao patronato, para a neoburguesia moderna a religião tornou-se completamente indiferente e até por vezes incómoda. O que comprova que Marx tinha toda a razão. A burguesia do séc. XIX usou a religião e os poderes clericais, quando os achou úteis aos seus interesses de emancipação comercial e de domínio sobre os demais, mas quando atingiu o auge no pós-guerra, colocou-os totalmente de parte, encarando hoje até em certos casos a religião como inimiga tolerável, pois esta última apregoa a doutrina do sacrifício em prol de interesses ascéticos, quando a neoburguesia quer os cidadãos primários e impulsivos na procura do imediato e do fútil.

E até os próprios sindicatos já estão completamente imbuídos nesta lógica neoburguesa. Há alguma reivindicação sindical que não preconize aumento de capital? Os maquinistas da CP fazem greve porque lhes cortam as horas extraordinárias, ou seja, menos capital. Os professores protestam contra a avaliação porque implica menos progressão na carreira, logo menos capital. Os polícias e os enfermeiros querem subsídios de risco, que envolvem mais capital, e os médicos não querem cortes nas horas extraordinárias que envolvem menos capital. Todas as reivindicações de qualquer sindicato moderno, são coadjuvantes com a lógica neoburguesa. Os sindicalistas precisam de capital, para poderem ter a esperança de também eles poderem vir a ser burgueses, pois a maior afronta que se pode fazer a um burguês, e os sindicalistas demonstram-no bem em manifestações, é o corte de capital, para que com este possam também eles deterem as suas posses pequeno burguesas como carro ou telemóvel topo de gama.

A neoburguesia contemporânea tornou-se assim muito mais poderosa do que o era no tempo de Marx, pois além de deter património e o sector produtivo, como já tinha no tempo de Marx, adquiriu uma arma muito mais eficaz no mundo moderno: o sector financeiro, onde o crédito agiota é a peça para que consiga manter a supremacia. E não vale a pena iludirmo-nos pois esta burguesia tem uma origem muito bem definida, e essa origem está nos Estados Unidos da América, onde esta lógica da posse, do frívolo, da publicidade e do crédito, estão no código genético de cada cidadão. A doutrina económico-burguesa americana, que se espalhou para a Europa no pós-guerra, foi de fazer crer ao cidadão, que também ele pode ser uma Oprah Winfrey ou um Ronaldo, bastando para tal endividar-se, consumir bastante publicidade e possuir itens que dão estatuto social, como roupa de marca ou carro de luxo. E mesmo que tal até seja verdade para uma pequeníssima minoria, este sistema faz com que a grande maioria na frustração de atingir a supremacia burguesa, vá alimentado a voracidade de grande burguesia na sede cada vez mais insaciável por capital e por poder!

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