O automóvel, a família e os filhos


Em 30 anos, as famílias ficaram mais pequenas, os nascimentos diminuíram, mas o número de automóveis cresceu cerca de 300%, tendo quadriplicado.

Em 1983, cada agregado familiar em Portugal, termo técnico para família, tinha em média 3,3 pessoas. Na altura o país tinha um quarto dos automóveis que tem hoje (ver relatório da ACAP, página 206). Hoje, passados cerca de 30 anos, com quatro vezes mais carros que em 1983, cada família tem apenas 2,6 pessoas. Ou seja, Portugal passados trinta anos, tem quatro vezes mais automóveis mas uma família 20% mais pequena.

A ideia generalizada que uma família, principalmente numerosa, precisa de carro no dia-a-dia como "pão para a boca", não é nem social nem cientificamente correta. É uma ferramenta que pode ser útil, mas não é vital. Aliás, o próprio Primeiro-Ministro, nas declarações recentes sobre as propostas para o aumento da natalidade, referiu que introduzirá o passe familiar, uma ferramenta essencial para a mobilidade das famílias com menores. Muitos de nós tiveram irmãos, e muitos de nós usaram transportes públicos na adolescência, e em alguns casos os nossos pais nem automóvel tinham. E não foi por isso que fomos menos felizes, menos bem educados, ou menos bem formados academicamente.

Na realidade, os pais de hoje em dia trazem os filhos para a escola de automóvel, porque se deixaram em parte conduzir por uma política do medo, que é tudo menos racional. Introduzimos no subconsciente que as ruas e as estradas são perigosas para as crianças, onde existe criminalidade, eventualmente pedófilos à espreita, e vários atropelamentos. Na senda de querer preservar a segurança máxima aos nossos filhos que tanto amamos, achamos que é nosso dever paternal e maternal, levá-los para os estabelecimentos de ensino, obrigatoriamente de automóvel, essa "bolha metálica que os protege das intempéries e dos malfeitores do espaço público" como em tempos um urbanista ironizou. Mas na realidade, quantos mais de nós tiverem essa atitude demasiado protecionista, que até lhes é prejudicial, mais as ruas se tornam locais inóspitos e perigosos, com velocidades elevadas, desrespeito pelos peões e por todos os utilizadores vulneráveis, e muito pouco acolhedoras para uma criança.

A natalidade em Portugal decresce a olhos vistos e segundo um estudo demográfico interessante, se este rácio de nascimentos se mantiver, em 2040 a população de Portugal rondará os seis milhões de habitantes, menos 40% do que a atual. Na nossa escala de prioridades demos talvez primazia a certos bens e serviços, que talvez erradamente fossem menos importantes que a natalidade e a conceção. Obviamente que a natalidade deve ser planificada e desejada, mas será legítimo preterirmos ter um filho em detrimento da posse de um automóvel? A pergunta poderá parecer invasiva da liberdade individual de cada um para idealizar a família que lhe aprouver, mas as estatísticas não o enganam. Desde 1980 que o número de nascimentos tem caído em Portugal, mas desde esse ano que o número de carros no país não para de crescer, tendo tido desde esse ano até hoje um crescimento de cerca de 300%. Ora, muitos dos argumentos das pessoas que optam por não ter filhos, ou ter apenas um, é exatamente o financeiro, o que é perfeitamente legítimo. Um filho acarreta despesas, mesmo que muitas delas o Estado Social (ainda) suporte. Todavia consideremos que o automóvel tem um custo médio total às famílias de cerca de 370€ por mês. Não teria mais filhos se o Estado lhe desse 370€ por mês por cada filho? Então, troque o carro que tem na garagem por um filho, e os seus problemas financeiros ficam sanados. Se tal for feito em larga escala, haverão menos carros nas ruas, menos atropelamentos, menos carros sobre o passeio, bairros mais acolhedores e um espaço público mais seguro e agradável, espaço esse que o seu filho usará para brincar e para se deslocar até à escola a pé ou de bicicleta.

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