A era da Demagogia digital


Na Grécia clássica, aquando da criação primordial da democracia e da fundação de muitos dos valores ocidentais, o sistema democrático era todavia substancialmente diferente do atual. A diferença mais relevante prende-se com o facto de hoje termos uma democracia representativa, sendo todavia muito mais universal do que a democracia grega. Essa democracia representativa foi de certa forma fundada pela república romana, tendo os ingleses posteriormente já no séc. XIII refundado a ideia de democracia representativa. Assim, havia já nos clássicos, dois tipos distintos de democracia, a democracia direta, levada a cabo pelos Gregos e a democracia representativa ou indireta, usada amiúde pela república romana, sendo a República, a par com a Monarquia e o Império, uma das três principais fases da civilização romana.

A grande diferença entre estes dois tipos de democracia prende-se com o facto de que na direta, os cidadãos decidiam diretamente nas decisões governativas da pólis, ou da cidade-estado, ou seja, pode-se dizer que os cidadãos gregos reunidos em assembleia eram de facto o órgão decisório para quase todas as políticas públicas levadas a cabo pelos órgãos executivos, não delegando tais tarefas decisórias a representantes. Em certa medida, pode-se afirmar, que os cidadãos na antiga Grécia, eram também o órgão executivo da cidade, na medida que tomavam parte de todas as decisões importantes da gestão da pólis, mesmo que não fossem os executantes diretos das mesmas. Naturalmente, para não se criarem entropias no processo legislativo e nos trabalhos das assembleias, a noção de cidadão era muito mais restrita do que hoje, e na prática apenas os homens livres, maiores de idade, não analfabetos e nascidos na pólis, poderiam participar nas assembleias. Todavia há registos de que as assembleias chegaram a ser compostas por cerca de 20 mil cidadãos, o que, presume-se, deveria degenerar numa certa entropia na execução dos trabalhos da dita assembleia, desde o mantimento do silêncio para que os oradores se pudessem pronunciar, até à contagem dos votos, visto que os votos eram naquele tempo, naturalmente, contados um a um.

Na democracia indireta, mais usada pela República de Roma e seguida por todos os modelos democráticos ocidentais, pelo contrário existia um senado, composto de senadores. Os senadores eram nomeados pelos cônsules, que por sua vez eram eleitos na denominada Assembleia das centúrias. A Assembleia das centúrias constituiu a primeira assembleia nacional do Reino de Roma, fase civilizacional ainda anterior à República, mas que se prolongou durante esta. Cada uma das classes nessa assembleia se dividia em várias centúrias, cujo número total na assembleia era de 193, sendo que a divisão era feita em função das contribuições fiscais de cada cidadão, agrupando-os em seis classes distintas, de acordo com os seus patrimónios. Eram considerados por norma cidadãos apenas os homens maiores que tivessem prestado serviço militar. Os que não possuíam bens eram colocados entre as classes inferiores. Esta assembleia elegia os altos magistrados romanos como os cônsules e os pretores, figuras congéneres aos contemporâneos governadores estaduais, juízes de tribunais superiores ou generais, ou seja os órgãos executivos, legislativos e militares. Estes altos magistrados, durante a República de Roma, nomeavam também os senadores, e quando estes magistrados deixavam de exercer funções, tinham por norma também lugar automático como senadores. Considerando que o senado era o órgão com mais poderes na administração da República de Roma, e que os senadores eram antigos altos magistrados ou nomeados por estes, sendo que os altos magistrados eram nomeados pelos cidadãos, pode-se assim de certa forma afirmar que a República de Roma foi a fundadora da Democracia indireta ou representativa.

Os dois sistemas têm naturalmente vantagens e desvantagens. A Democracia direta é mais democrática, mas exige mais presença e estudo por parte dos cidadãos. Na Democracia indireta votamos nas pessoas as quais partilhamos algumas ideias estruturantes, para depois nos representarem numa assembleia, num senado ou num órgão executivo. Naturalmente que esta taxonomia na divisão dos dois modelos não é cristalina podendo haver sistemas mistos. Mas o que queria enaltecer, é como é que surgiu a figura do demagogo. O demagogo (do Grego, líder das massas) surgiu exatamente na democracia direta grega, que pelo facto de ser direta e de possuir assembleias com milhares de cidadãos onde todos podiam exercer a sua voz, aumentou a entropia e o caos dos trabalhos da assembleia. Surge então alguém, que baseando o seu discurso não na dialética ou na razão, apela às massas fazendo uso do preconceito e da ignorância para daí tirar proveitos políticos. Pode-se em certa medida afirmar que Hilter foi um demagogo durante a República de Weimar, um período democrático na Alemanha entre as duas grandes guerras. De salientar que o demagogo surgiu num regime democrático e não num regime tirânico, exatamente por haver democracia participativa, pois numa tirania o líder pode usar meios mais agressivos e despóticos para tomar diversas medidas sem consultar os cidadãos. O demagogo surge exatamente porque o líder precisa do apoio direto dos cidadãos eleitores, sem os quais não pode levar a cabo as ações que considera importantes.

E é exatamente no meu entender, o que temos presenciado nas democracias modernas e no mundo cibernético das redes sociais e da Internet. Indiscutivelmente a Internet e as suas plataformas das redes sociais, são meios democráticos, na medida que todos podem participar e fazer ouvir a sua voz. Mas como em muitas plataformas não se faz qualquer tipo de restrição no acesso, na moderação do discurso, no número mínimo de caracteres ou até em considerações tão simples como uma correta ortografia e uso da língua, o caos e a entropia nas relações entre os diversos intervenientes tende a aumentar. As pessoas partilham cada vez mais emoções e cada vez menos ideias. E é neste contexto entrópico entre os diversos intervenientes desse espaço democrático que é a Internet, carregada de intervenções curtas, não fundamentadas, muitas vezes irascíveis, e não ponderadas, que surge a figura do demagogo digital, aquele, que tal como na Grécia antiga nas assembleias de milhares de cidadãos, faz uso do preconceito e da ignorância, para que possa obter o maior número de "gostos" ou de "polegares para cima"! 

A Internet levou a democracia ao extremo, alargou-a a toda a população, mas acentuou os perigos inerentes desse alargamento, alavancando os instintos imponderados das massas. Falta então também na Internet outras plataformas mais ponderadas, mais racionais e mesmo mais elitistas, que incentivem os intervenientes a tomar posições mais estruturadas e acima de tudo, que usem o pensamento, a Análise e o Racionalismo crítico, não se limitando a alinhar nos rasgos ideológicos da vox populis. E nessas plataformas são necessários os meios e ferramentas cibernéticas para que sejam essas as intervenções valoradas e não as curtas e demagogas. Nesse dia, teremos certamente uma democracia não só universal mas muito mais rica e madura.

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