A administração pública em Portugal


Relato de um ex-funcionário público, técnico superior durante três anos!

Nota preambular: Este era o mail que eu queria ter enviado no último dia de trabalho a todos os meus colegas e chefias no instituto público para o qual trabalhei durante três anos. Todavia, não tive a coragem para o fazer, pois fui excelentemente bem tratado pelas chefias e colegas durante todo o período, para o qual trabalhei para o Estado. Todavia, hoje, à distância, creio que é premente a partilha desta mensagem com o público, pois é muito importante que se faça a diferença entre administração pública e serviço público, e escreve-vos um homem de esquerda.

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Caros colegas e chefias

Odeio despedidas; lembra-me o fatídico dia de 10 de abril de 1912, quando o povo se despedia de quem ia a bordo do Titanic.

Assim, espero que para muitos de vós seja apenas um até já!

Estes três anos representaram a minha primeira experiência profissional na administração pública, que me enriqueceu e gratificou bastante, a nível pessoal e profissional. Já tinha trabalhado anteriormente na indústria, no ensino particular, assim como no sector aeroportuário, sempre no sector privado! Neste sentido cumpre-me apenas ressalvar algumas notas muito positivas e alguns aspetos a melhorar, ditos obviamente sem qualquer caráter vinculativo, pois são ditos por alguém que parte para outros projetos profissionais e pessoais.

Trabalhar na administração pública, foi das experiências mais enriquecedoras que pude usufruir na vida, e temo que muitos dos colegas não saibam dar o valor às regalias de que podem usufruir, considerando o atual mercado de trabalho. Conheci aqui no instituto nestes três anos, pessoas extremamente competentes e válidas tecnicamente, excelentes profissionais qualificados, que dão a melhor imagem do instituto, entre portas e no exterior. Regozijo-me bastante por saber que o Estado (ou seja todos os cidadãos), tem a trabalhar para si quadros altamente qualificados e competentes para as tarefas que lhes são incumbidas! A título de exemplo, após uma pesquisa rude no Linkedin que fiz no início do estágio, apercebi-me que as qualificações académicas de muitos dos meus colegas são de relevo excecional. Também encontrei pessoas extremamente motivadas para o trabalho, para os processos ou para a rotina do quotidiano. Na administração pública pude usufruir gratuitamente do CCP (antigo CAP), pude usufruir de diversa e variadíssima formação no exterior, assim como em Portugal, que me enriqueceu bastante profissionalmente; pude viajar pelo país em diversas ações de formação e promoção da PI, em Portugal e no estrangeiro, com todas as despesas comparticipadas, como hotel de qualidade superior ou comboio sempre em primeira classe, e no final destes três anos, guardo uma experiência e conhecimentos profissionais na área da Propriedade Industrial, que certamente serão uma mais valia inegável para o meu futuro profissional! Assim, só posso estar extremamente satisfeito por todo o trabalho que desenvolvi no instituto nos últimos três anos.

Como aspetos a melhorar, se me é permitido afirmá-lo, pois são ditos por alguém que sai, creio que a administração pública ainda assenta numa lógica de hierarquia piramidal, que remonta aos tempos feudais. Aliás, muitos historiadores e sociólogos teorizam que só assim, Portugal ao longo da sua história de mais de 800 anos, conseguiu manter um império unido e coeso. Creem mesmo alguns, que foi devido a esta génese centralizadora e piramidal, que da América do Sul, apenas surgiu um país lusófono enorme, o Brasil, contrastando com variadíssimos países hispânicos. Esta lógica feudal tem repercussões no meu entender prejudiciais para o trabalho diário, pois desmotiva de uma forma extremamente acentuada, todos os colaboradores. Como calcularão, não mencionarei nomes, mas conheci nestes três anos, pessoas extremamente válidas, mas infinitamente desmotivadas para o trabalho do dia-a-dia, fazendo, passo o plebeísmo "tudo para não fazer nada"! Não quero de todo com isto afirmar que a culpa é das chefias ou dos órgãos dirigentes, pois não creio veementemente que seja. O erro, no meu entender, está no paradigma sistémico, que assenta numa lógica hierárquica piramidal de declive muito acentuado, extremamente rígida e inflexível, com diversos patamares e camadas entre o dirigente de topo e o técnico de base. Quantos de vós já enviaram uma mensagem de correio-e à presidente? Ou ao vogal do CD? Ou ao superior hierárquico acima do vosso chefe? São questões complexas, e obviamente não cabe de todo ao instituto per se saná-las, mas sim às mais altas chefias do Estado, todavia, fica apenas a visão de alguém que já contribuiu e contribui amiúde em vários projetos e associações de hierarquia horizontal!

Outro aspeto que creio, que infelizmente está presente no funcionalismo público, é o desfasamento entre o sentimento que o funcionário público tem sobre as suas funções, e aquilo que deve realmente ser o serviço público. Os brasileiros muito sabiamente denominam por servidor público alguém que trabalha para o Estado, ou seja, alguém que serve o bem comum. Um funcionário público, no meu entender, deve ser aquele que deverá trabalhar em prol da Rex Pública (lede a República de Platão), ou seja, a coisa pública, aquilo que pertence a todos, e não deve ser apenas aquele que faz um esforço para ir trabalhar porque tem contas para pagar no final do mês, e à falta de melhor, o emprego no Estado sempre se adapta! Ser funcionário público, é trabalhar em prol da comunidade, em prol do Estado, em prol de todos os cidadãos e pensar em primeiríssimo lugar nos cidadãos e não na hora de saída. Advirto vivamente que fui parte coadjuvante e fui cúmplice e autor de todas estas situações que considero inapropriadas, como por exemplo, passar diversas horas do dia no FaceBook, na Internet ou a ver mails, visitar amiúde várias redes sociais, picar o ponto de manhã e ir tomar café, ou fazer duas horas e meia de almoço. Num momento de grande contenção orçamental, creio que se exige por parte de todos, mais zelo e respeito pelo erário público, ou seja, pelos montantes pecuniários que são de todos os cidadãos. Fica apenas a visão de alguém que é trabalhador independente, e tem bem presente, o que teve de pagar ao fisco no ano transato só em impostos de rendimentos auferidos como trabalhador liberal.

Finalmente, outro aspeto que considero a melhorar por parte da administração pública é o hermetismo gritante que grassa em todos os departamentos. Percebo que as questões de comunicação sejam deveras complexas, e exige-se naturalmente aos órgãos do Estado, nas suas comunicações, a prudência e o recato. Todavia, o receio instalado que os funcionários públicos em Portugal têm pela inspeção e a auscultação das suas tarefas é preocupante. No caso das patentes, que conheço melhor, posso por exemplo referir que só quando quase todos os países do mundo civilizado já publicavam os Relatórios de Pesquisa, é que Portugal, passou a publicá-los. Continuamos sem publicar as opiniões escritas dos RPOE, os textos das patente não estão pesquisáveis nos motores de busca (ao contrário da maioria de todos os outros offices europeus e americano) porque apesar de ser exigido a letra Courier para melhor processamento de imagem através de OCR, esse processamento não é feito na publicação dos pedidos. Mais intrigante ainda, é o facto de, as milhares de validações de patentes europeias que dão entrada em Portugal, ou seja, um imenso acervo de conteúdo de natureza técnica escrita em língua portuguesa, só estar acessível por pedido expresso, ou segundo consta, algures num depósito em Palmela.

Por fim, algo que acho caricato, é a comunicação hermética que o Estado tem perante os seus cidadãos. Ora vejam, a Google, que tem 400 milhões de utilizadores e tem lucros na ordem dos 6 mil milhões de euros, não tem apoio ao cliente, linha verde ou linha azul, número 707 ou 808, nem muito menos serviço de atendimento ao público! A Google, assenta numa lógica de comunicação partilhada, onde todos podem ajudar todos, e o caso mais simples desta lógica é a dos fóruns. A Google esclarece todas as dúvidas dos seus clientes através de fóruns, onde podem responder funcionários da Google, mas também quaisquer outros utilizadores. As respostas dos utilizadores podem ser pontuadas em função da sua utilidade, e assim, funciona de forma simples e comunitária um sistema partilhado em que todos contribuem. Há várias empresas que assentam a sua comunicação com o cliente nesta lógica vangauardista, como a Microsoft, a Mozilla ou mesmo como fazia a ZON. Em Portugal, devem trabalhar milhares de funcionários públicos só para atender o cidadão diretamente, muitos dos quais sabem pouco sobre a matéria. Um caso paradigmático é o da Segurança Social. Esclarecer uma dúvida na Segurança Social, nos seus atendimentos ao público é um drama: têm de ir lá às seis da manhã, tirar uma senha, e esperar que com sorte sejam atendidos às quatro e meia da tarde. Eu, num simples livro de comentários, de borla, sem ganhar um cêntimo, devo ter esclarecido mais cidadãos, do que qualquer funcionária da Seg. Social, e não porque seja mais competente, mas porque fi-lo porque quis, e não porque tinha contas para pagar.

Por estranho que pareça, a Internet, não resolveu os problemas do hermetismo do Estado, pois a complexidade que era outrora em papel, passou para a versão on-line. Um caso paradigmático é o Modelo 3 do IRS. O modelo que outrora era em papel, passou simplesmente a ser on-line, o que significa que nem que todos os portugueses tivessem Internet, só metade é que sabia preencher o modelo 3, pois para o comum dos mortais é um modelo críptico. Na Holanda, só se pode preencher a folha de impostos através da Internet, todavia, o formulário é extremamente simples, e qualquer um que saiba ler, consegue preenchê-lo. Não quero parecer injusto, pois o instituto para o qual trabalhei deu passos tecnológicos importantes nos últimos anos para a submissão de pedidos de patentes e registo de marcas online, que tem sido um sucesso, todavia, a interface com o utlizador continua a ser um pouco hermética e críptica, para aqueles que não dominam as questões da propriedade industrial.

Percebo que há questões complexas em redor dos variadíssimos assuntos do Estado, e que é impossível o comum dos cidadãos dominá-las, mas quando tal acontece, a interface com o cidadão ou utilizador tem de funcionar por camadas de conhecimento. É o que acontece com a Google: há várias camadas de conhecimento, e a primeira que aparece quando alguém visita uma página qualquer é da máxima simplicidade, e há medida que o indivíduo quer aprofundar mais os seus conhecimentos, a complexidade vai aumentado. Ora tentem ir a uma página qualquer de um organismo público e verão que precisam de perder uma meia-hora para assimilar toda a informação. Este sistema perdura, pois é necessário que o comum dos cidadãos sustenha advogados e intermediários, entre o Estado e o comum dos mortais, e tal paradigma é claramente ainda o paradigma de uma sociedade rural e iletrada!

Perdoem-me a eventual ousadia na mensagem-e que vos redigi, foi apenas a visão de alguém que já trabalhou no sector privado variados anos, e que contribui amiúde em várias associações cívicas. Conheci no sector público, como já referi, das pessoas mais válidas técnica e profissionalmente. Regozijo-me bastante por saber, que enquanto cidadão e contribuinte, o Estado tem a trabalhar para si, excelentes profissionais qualificados, que não ficam nada a trás, pelo contrário, dos profissionais do sector privado. Estes três anos foram uma experiência extremamente enriquecedora, pois se quando entrei no meu primeiro dia os meus conhecimentos eram deveras parcos, hoje apercebo-me que obtive, através de formação, dos meus colegas e das chefias, um conhecimento que inegavelmente será uma mais-valia para o meu futuro percurso profissional.

Assim sendo, só tenho de agradecer a todos vós, todo o conhecimento que me transmitiram
(e numa sociedade baseada no conhecimento, tal é uma dádiva notável

Assim sendo
Muito obrigado

Até já

João Pimentel Ferreira
Ex-Examinador de Patentes (Técnico Superior)

5 comentários:

  1. Este parágrafo safa-te pois que no Noca´s café muito tempo tu lá passavas assim como belos passeios davas na rua dos Bacalhoeiros durante as horas normais de trabalho e também o tempo que te dedicavas a colar autocolantes nos carros que no teu pensamento estavam mal parqueados. O mundo não é nada perfeito.

    Advirto vivamente que fui parte coadjuvante e fui cúmplice e autor de todas estas situações que considero inapropriadas, como por exemplo, passar diversas horas do dia no FaceBook, na Internet ou a ver mails, visitar amiúde várias redes sociais, picar o ponto de manhã e ir tomar café, ou fazer duas horas e meia de almoço.

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  2. Epá! Li o teu e-mail de despedida e realmente não é nada coincidente com esta prosa.
    Realmente os maníacos têm destas coisas escrevem bem, mesmo muito bem, mas também se acobardam e realmente depois no longe lá dizem o que sentem, muitos claro está ressabiados.
    Eu sei é desagradável ao fim de 3 anos ter que sair, Ho como sei (eu a té meti baixa nessa altura para ver se passava a efetivo.
    Onde é que tu poderias estagiar indo para o estrangeiro remunerado pelos dinheiros públicos?
    Quantos serviços ou empresas te dariam possibilidade de obteres formações como inglês e outras e ao fim do mês te dar um salário, há muita gente em Portugal e noutros países que estagiam a custo remuneratório igual a ZERO, coisa que eu não concordo!
    Portanto, ficava aqui bem era o e-mail de despedida que enviaste a todos aqueles que te acolheram e no meio da tua “genialidade” ainda admitiam as tuas faltas de tino na linguinha. Quanto ao outro comentário, incorre em muita moderação!
    Beijinhosssssss.

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  3. Caro Anónimo, por certo ex-colega de trabalho!

    Antes de ser funcionário público, sou contribuinte, e enquanto contribuinte sou aquele que te paga o ordenado. Em 2010, como funcionário público e como trabalhador por conta própria paguei 3 MIL EUROS DE IRS.

    Só Explicações de matemática declaradas ao fisco, nesse ano declarei cerca de 5 mil euros! Enquanto família e amigos me chamavam de 'bonzinho' e otário respetivamente por pagar impostos certinhos (ainda para mais em explicações onde praticamente ninguém passa recibo)

    Assim é meu dever, enquanto contribuinte, exigir que tu trabalhes, como se trabalha no sector privado, nem mais, nem menos; e ganhares o que se ganha no sector privado em função das tuas competências e do teu saber.
    O problema é termos esta lei laboral comuna, que faz com que tu aches que o teu salário, o teu estatuto, e os teus direitos são dados adquiridos para sempre, independentemente do que faças ou não faças!

    Meu caro, não estou ressabiado, trabalhar para o Estado foi extremamente gratificante e foi um previlégio, tendo conhecido pessoas deveras qualificadas e excelentes profissionais. Foi extremamente gratificante para o meu CV e apreendi conhecimentos técnicos de relevo; mas também vi muita gente que faz tudo para não fazer nada, sempre a fugir com o cu à seringa do trabalho, que passa 25h/dia em frente ao facebook, e que faz tudo ao pontapé sem qualquer tipo de zelo. O Estado tem do melhor e do pior que há de profisisonais no mercado de trabalho e as chefias, tratam tudo como igual.

    E fica sabendo, caso tu não saibas, que O TEU PATRÃO SOU EU, pois sou quem te paga o salário para as contas!

    Um beijinho

    Um contribuinte,
    que vai levar o saque nos impostos em 2013, para que tu mantenhas o status quo, e não estrebeches muito nas manifestações!

    PS: Recomendo-te que leias a República de Platão para que te apercebas do verdadeiro signficado de República e de PÚBLICO! No Brasil chamar-te-iam de SERVIDOR público, sabes o que é servir os outros, servir a comunidade?

    PS2: Sim, afirmativo, pactuei com muitas dessas situações, como fazer duas horas e meia de almoço, usar a net para facebook, redes sociais e pornografia (como alías muitos também fazem) e picar o ponto e ir tomar café durante meia-hora.

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  4. Oh rapaz vai-te curar !!
    É por estas e por outras que ao fim de algum tempo de estares empregado levas o chuto no rabo.
    Quem é que te atura !!

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  5. Aturas tu, que sem saber quem és, sei apenas que com este texto te criei muita mossa :)

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